A selvageria, o terrorismo, o banditismo, a barbárie, o mau-gosto e a criminalidade sem propósito que se tornaram lugar-comum no Ocidente já não configuram mais uma anomia: trata-se de uma regressão civilizatória.
Os eventos franceses das últimas semanas reforçam a convicção de que a França, a Europa, o Ocidente e afins vivem, amargamente, um duro, inquestionável e irrevogável momento de regressão civilizatória. Já há tempo que os fundamentos de cultura e espiritualidade que matizaram o mundo ocidental estão, como sabido, em acelerada decomposição. Europeus e norte-americanos perderam a fé e a sua ética católica ou protestante e estão construindo, desde ao menos as guerras totais do século XX, uma sociedade pós-cristã. Tudo isso vem indicando que o esteio moral que galvanizou a longa experiência civilizacional do Ocidente deixou de ser majoritário no mercado das ideias.
O identitarismo – e todos os seus relativismos – parece ter vencido mais e melhores batalhas nos últimos 50 anos. A “religião woke” – por falar e gritar mais alto – parece ter soterrado as demais narrativas; mesmo as mais consolidadas racional e moralmente. Como decorrência de tudo isso, firmou-se um estranho paroxismo que só oferta lugar de destaque aos admiradores irrestritos do jovem Nahel, morto em Paris no último dia 27 de junho, após uma interpelação policial rotineira.
O assassinato de Nahel tem causado manifestações que atravessam as cercanias de Paris e seguem sensibilizando o país inteiro. Milhares – talvez, mais de uma dezena de milhar – de automóveis foram incinerados em toda a França. Desde 2005 não se via nada similar. Centenas de veículos do transporte público foram depredados. Dezenas de estabelecimentos públicos foram vandalizados. Milhares de estabelecimentos comerciais foram saqueados. Centenas de pessoas comuns foram agredidas. Dezenas delas precisaram ser hospitalizadas. Milhares de oficiais da lei e da ordem – majoritariamente policiais – foram hostilizados. Centenas de autoridades políticas e militares seguiram sendo intimidadas. Dezenas de parlamentares foram interpelados por seus eleitores. E um prefeito, de uma cidade do interior, teve a sua residência particular violada, e sua família, posta em constrangimento.
Segmentos de direita, extrema ou moderada, culparam a imigração. Nahel era um rapaz de 17 anos, fruto de uma família imigrante e disfuncional, vivendo na periferia de Paris em “territórios perdidos da República”, indiferente à cultura francesa e contrário aos ditames éticos e morais do Ocidente.
Segmentos de esquerda, normal ou desvairada, culparam o racismo estrutural, o machismo ambiente, a virilidade policial, a falta de empatia com a diferença e com o sofrimento alheio, a ausência de mais mulheres em postos de comando e a incapacidade do Estado francês em “acolher toda a miséria do mundo” – para lembrar uma máxima do inesquecível Michel Rocard, representante de uma digníssima esquerda francesa normal.
Não é a primeira vez que um incidente similar acontece na França nos últimos 40 ou 50 anos. Mas talvez seja a primeira vez, no entanto, que a noção de anomia perdeu, integralmente, a sua capacidade de persuasão. O que acabou por dar vazão à reabilitação do termo “descivilização”.
O presidente Emmanuel Macron parece ter sido o primeiro presidente de um país ocidental a lançar mão desse termo, em reunião do Conselho de Ministros, semanas atrás, antes mesmo do fatídico dia 27 de junho, para explicar a situação francesa, europeia e ocidental. Na ocasião, o presidente da França reconhecia que o mal-estar francês generalizado provém e induz causas e consequências, como sempre, extremamente complexas. Mas, por alguma razão, desde algum tempo essas causas e consequências ganharam outro teor, dispersa dimensão e um novo diapasão.
A insatisfação generalizada, notava ele, provavelmente seja uma marca francesa desde o processo revolucionário do século 18. Mas, em algum momento deste século 21, ela ultrapassou níveis razoáveis de mero desespero e desesperança. O retorno da violência plural começou a saturar a paciência de todos, inclusive dos mais estoicos. A higidez e a racionalidade de instituições historicamente consequentes deram lugar a relativizações. A deontologia de funções e comportamentos públicos e privados perderam a sua própria natureza diante da desqualificação da autoridade e de autoridades. O sentido da identidade francesa que informa “o que é ser francês”, pela primeira vez, perdeu, decisivamente, sua essência ante o identitarismo desbragado. E, com isso, tudo o que outrora foi sólido e tangível entre os ocidentais começou a, verdadeiramente, se desmanchar no ar e a regredir no chão de terra do cotidiano concreto, notadamente, dos franceses.
Deixou-se, portanto, seguia o presidente, de estar-se diante de somente um “declínio do Ocidente”. Um declínio evidente e já consolidado no tempo e no espaço desde, pelo menos, o século 19. Iniciou-se, em algum instante do século 21, um novo tempo do mundo traduzido num momento de “descivilização”.
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O processo civilizador, Volume 1: Uma história dos costumes
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A noção precisa do termo “descivilização” foi elaborada e trabalhada pelo sociólogo Norbert Elias em sua obra-máxima de 1939, O Processo Civilizatório. O núcleo de seu argumento consistia em constatar que, ao longo dos séculos, especialmente na Europa e notadamente na França, as pessoas foram construindo mecanismos morais e racionais de controle da violência a partir do autocontrole de suas pulsões. Como resultado dessa gramática progressiva de posturas racionais, a civilidade, urbanidade, cordialidade, cortesia, gentileza, cortesania, sutileza, humor, empatia e afins vivaram regras de convívio no Ocidente. Mas essas posturas, argumentava Elias, não configuram ganho civilizatório eternamente garantido. Processos civilizatórios podem, seguia ele, estacionar e mesmo regredir. E, ao regredir, tendem a gerar “descivilização”.
O período entreguerras foi um grande momento de regressão. Pela primeira vez na história contemporânea do Ocidente a polidez e as boas maneiras se fizeram ausentes na maior parte das relações. A violência plural do conflito de 1914-1918 brutalizou completamente todas as relações humanas, alterou espaços de experiência, modificou horizontes de expectativas e conduziu o império da civilidade ao império da suspeição, o império da urbanidade voluntária ao império da agressão gratuita e sem razão.
Noventa anos depois, parece que as portas dessa desrazão foram reabertas. Uma regressão inquestionável parece tomar conta de todas as interações humanas. O “declínio do Ocidente”, do qual muito se fala, não se percebe a olho nu. Mas a degeneração da civilidade e da urbanidade pode ser notada em praticamente todas as esquinas.
Vive-se, hoje – no que pode ser entendido como neste início de século 21 – o retorno inapelável de certa banalização da violência plural simbólica, física, verbal, institucional. Uma opinião diferente da média de determinada audiência, por exemplo, pode virar, em qualquer lugar do mundo ocidental outrora modelo de civilidade e urbanidade, motivo para ameaças, inclusive, de morte, em lugar de estímulo para discussão e superação de diferenças via persuasão. O descontrole das pulsões virou a regra. Basta uma visita rápida às bolhas das redes sociais, do noticiário ou dos espaços universitários – inclusive os mais nobres e de altíssima performance. Ninguém escuta ninguém. Ninguém respeita ninguém. Sim: isto é anomia.
Mas o caso Nahel veio indicar que, talvez, realmente, seja mais do que somente anomia. Tudo que se viu e se vê desde 27-28 de junho na França desmascara, mais uma vez, a constatação indigesta de que algo cheira muito mal no coração do Ocidente.
A selvageria, o terrorismo, o banditismo, a barbárie, o mau-gosto, a criminalidade sem propósito viraram o pão de cada dia nos principais países, nas principais capitais e nas principais cidades de todo espaço ocidental e extremo-ocidental, como é o caso do Brasil. Isso somado não é, simplesmente, realmente, somente, anomia. É regressão.
Não há expressão mais apropriada para se compreender, por exemplo, as tormentas brasilienses de 8 de janeiro de 2023. Viu-se naquilo muitas claras e límpidas mostras de regressão.
Há cem anos, uma regressão virou alimento para ovos peçonhentos de serpentes indomáveis que encarnaram em tipos estranhos como Stálin, Hitler, Mussolini e afins. Resta saber se 1) a regressão atual configura, realmente, uma “descivilização” como percebe o presidente francês, 2) quais, em caso positivo, animais peçonhentos ela anda alimentando e 3) se teremos meios de contê-los antes do Armagedom.
Publicado no Jornal da USP.
Um excelente raio-x resumido sobre o ocidente.
Grato pelo comentário, Cristiano!
Forte abraço,
Albert.
Uma pergunta: considerando que os governos ou Estados também possuem sua parcela, não pequena, de responsabilidade por este processo, as revoluções não desempenharam um papel reorganizador da civilidade? Pois, embora eu não tenha apoiado o 8 de janeiro, que tem se mostrado resultado de uma operação de guerra híbrida no Brasil, também não posso ignorar que ele foi resultado de ações ilegais e inconstitucionais de órgãos públicos, sobretudo o “stf”.
Uma questão fascinante e imensamente complexa. Você tem razão. Momentos de efervescência revolucionária podem, claramente, modificar padrões de civilidade, comportamentos, emoções e controles de pulsões. Mas precisamos reconhecer que tem muito tempo que intenções revolucionárias não avançam para o amadurecimento de situações verdadeiramente revolucionárias. Veja, por exemplo, o caso das Primaveras Árabes. Nelas tivemos muitas intenções e pouca efetivação. Não houve revolução. Apenas degeneração. No resto do mundo ocidental e extremo-ocidental (o Brasil nesse caso) temos vivenciado a mesma coisa. Degeneração desconectada de revolução. Uma degeneração que consolida uma ambiência de desespero. Um desespero que ajuda a produzir a convicção de não se ter nada a perder. Uma convicção que pode levar sociedades inteiras às vias de fato. Muito disso tudo esteve presente em nosso 8 de janeiro, que foi produto da percepção de somatórios de vasta degeneração em vários níveis, traduzidas numa catarse coletiva que conduziu pessoas do comum a literalmente “tocar o terror” sem mensurar as consequências. Diferente do que se pode imaginar, tem uns quarenta anos que o “8 de janeiro brasileiro” é algo extremamente frequente nos quatro cantos do Ocidente.
Podemos tratar o tema como sendo um projeto concebido para a destruição da civilização fundamentada no direito romano, moral judaica e filosofia grega, tal como destacado pelo saudoso Papa Bento XVI. E, portanto, devemos procurar as origens do mal e combatê-lo usando as armas disponibilizadas pela tríade original do Ocidente, tal como destaquei.
Osmar Visibelli, reluta-se em reconhecer, mas o Ocidente é produto da cristandade. Quanto mais se fragiliza a cristandade, especialmente os valores do cristianismo primitivo, mais se depaupera o Ocidente. Vc tem integral razão e agudeza em recuperar a percepção do Papa Bento XVI. A aceleração da afirmação de uma sociedade pós-cristã – que era a preocupação maior dele – é um risco imenso para o planeta. Não existe civilização sem cultura e não existe cultura sem espiritualidade. Sem a cristandade, a cultura ocidental desaparece e, com ela, o Ocidente. Como reverter?