Por Olivier Dujardin*
Sem o apoio ocidental, a Ucrânia ruiria em pouco tempo; a Rússia, mesmo com deficiências, tem muito mais autonomia – além dos enormes estoques soviéticos.
Já se passou um ano desde que a Rússia lançou sua invasão à Ucrânia. Se os objetivos bélicos iniciais de Moscou nunca foram claramente anunciados, podemos, diante dos meios empenhados e da estratégia adotada durante a ofensiva, ter uma ideia do que não eram. Assim, uma invasão visando uma tomada completa da Ucrânia pode ser excluída. Com uma força de apenas 120.000 a 150.000 homens, a Rússia não poderia considerar a realização de tal operação.
Além disso, a falta de tropas era para ela, antes da mobilização parcial e das várias retiradas, um problema recorrente para manter uma frente muito grande em comparação com as forças disponíveis. Uma vez que o Kremlin concentrou suas forças no Donbass e evacuou as regiões de Kherson e Kharkov, parece provável que seus objetivos hoje sejam limitados à tomada mais ampla possível dos dois oblasts de Donbass, ou menos salvaguardar as posições arduamente conquistadas.
Desde o início do inverno, as posições mudaram pouco. Embora os combates continuem violentos, especialmente no Donbass, um equilíbrio de forças parece ter sido estabelecido e, do ponto de vista militar, a mudança líquida no equilíbrio de poder em favor de um dos dois beligerantes não parece óbvia. Os dois exércitos opostos têm pontos fortes muito diferentes.
O Exército ucraniano
Esta é uma surpresa nesta guerra. Sua capacidade de combate, resiliência e nível tático foram surpreendentes, sobretudo face à imagem que deixou durante os confrontos de 2014. A transformação deste exército foi muito importante e sua face mudou profundamente. No entanto, as perdas sofridas desde o início da guerra fizeram com que evoluísse ainda mais, continuando capaz de enfrentar o exército russo.
Pontos fortes do Exército ucraniano
- Agilidade: as tropas ucranianas souberam ser inventivas, mostrando grande flexibilidade tática para explorar as fragilidades do adversário. Essa característica foi muito favorecida pela transformação do comando sob a influência do Ocidente, pois passou de uma estrutura rígida e altamente centralizada de “estilo soviético” para um modelo descentralizado, deixando maior margem de manobra aos comandos locais;
- Drones: as forças ucranianas fazem uso extensivo de drones [1], mais do que seu adversário (especialmente no início), graças a um fornecimento constante dos países ocidentais. Isso lhes dá uma melhor visão geral da situação tática e, portanto, uma vantagem definitiva para fazer o melhor uso de sua artilharia e compensar parcialmente sua inferioridade em campo;
- Volume: mais de um milhão de ucranianos teriam sido mobilizados para a guerra, e cerca de 700.000 estariam no terreno, dos quais cerca de metade na linha de frente. É cerca do dobro do adversário, mas este volume deve ser espalhado por todo o território, ao contrário dos russos que podem se concentrar onde quiserem;
- Inteligência: este é talvez o ponto mais importante da ajuda ocidental, ainda que não seja o mais visível. Os serviços ocidentais, especialmente americanos e britânicos, fornecem uma grande quantidade de informações de todas as fontes que, graças à extensão dos meios disponíveis, dão aos ucranianos uma qualidade estratégica com a qual não podiam sonhar antes da guerra. Tudo também é fortemente apoiado pelo suporte de conselheiros ocidentais nas equipes;
- Entregas de armas e munições: os países ocidentais abastecem a Ucrânia com grandes quantidades, o que permite ao país resistir ao longo do tempo, embora a sua indústria militar nacional tenha sido bastante reduzida;
- Força moral: os ucranianos estão, sem dúvida, muito mais motivados do que o adversário porque vivem a guerra de forma muito mais concreta do que os russos.
Pontos fracos do Exército ucraniano
- Heterogeneidade das tropas: se parte das tropas ucranianas pode ser formada e treinada no Ocidente, isso diz respeito apenas a uma minoria dos homens enviados para a frente. A maioria dos mobilizados recebe apenas um treinamento muito limitado e forja sua experiência diretamente no front. Isto confere uma grande heterogeneidade às forças ucranianas que, embora possuam muitos efetivos, dispõem apenas de um contingente bastante reduzido de combatentes realmente capazes de realizar manobras ofensivas de armas combinadas;
- Reservas: à medida que a guerra se estende, a capacidade de mobilização da sociedade ucraniana diminui. Muitos homens já foram mobilizados, as perdas são altas e o número de mobilizados está diminuindo, especialmente porque oito milhões de ucranianos fugiram do país;
- Dependência material: o exército ucraniano vive hoje totalmente sob a influência da ajuda militar ocidental. Isto obriga o governo ucraniano a contar com a ajuda dos seus apoiadores em todas as suas decisões políticas e estratégicas, o que corresponde a uma perda de soberania. Se esta ajuda fosse interrompida por um motivo ou outro (esgotamento dos estoques de munição [2], por exemplo), a situação militar dos ucranianos se deterioraria muito rapidamente. A Ucrânia deve, portanto, aceitar a vontade nem sempre muito clara [3] de seus parceiros;
- Heterogeneidade do equipamento: o equipamento militar fornecido pelos ocidentais é muito díspar, com equipamentos muito diferentes por vezes fornecidos em quantidades muito pequenas. Isso impõe enormes problemas logísticos tanto para a manutenção e reparo de equipamentos quanto para o fornecimento de munições. Isso também complica o treinamento de soldados que dificilmente podem mudar de um equipamento para outro (não se muda de um obus 2S3 de origem soviética para um obus alemão PzH-2000 ou um Caesar com facilidade). Isto conduz, portanto, a uma gestão particularmente delicada das competências dos militares, com uma multiplicidade de micro especialidades;
- Lacunas de capacidade: apesar do fornecimento ocidental, o exército ucraniano sofre de deficiências de capacidade significativas em comparação com a Rússia. Isso é especialmente verdadeiro em sua aviação, onde o que resta dela não é apenas simbólico, mas também tecnologicamente desatualizado em comparação com a aviação russa. Partir para a ofensiva sem se beneficiar do apoio aéreo expõe as tropas a perdas severas, especialmente contra um exército que possui não apenas uma força aérea relativamente moderna, mas também uma poderosa artilharia. Se a utilização de drones associados à artilharia permite, em parte, cobrir esta carência, está muito longe de ser suficiente. Isso também é verdade no campo de mísseis, já que a Ucrânia só pode atacar em profundidade o território russo de forma marginal. Não são alguns drones Tu-141 antigos modificados para mísseis ou alguns drones civis convertidos para esta missão que irão realmente influenciar o curso da guerra;
- Infraestrutura deteriorada: os repetidos ataques com mísseis realizados pela Rússia, particularmente na infraestrutura de energia da Ucrânia, danificaram permanentemente as capacidades logísticas (transporte ferroviário) e produtivas do país;
- Economia sofrida: as guerras modernas são sempre guerras econômicas porque é a economia que sustenta o esforço de guerra. No entanto, a situação ucraniana nesta área é muito crítica. A economia e o tecido industrial ucraniano foram fortemente impactados e, hoje, tudo depende da ajuda financeira ocidental. O estado ucraniano vive de gotejamento e qualquer interrupção ou redução desse gotejamento provavelmente causaria um colapso do estado.
O exército ucraniano sabe como resistir bravamente ao seu agressor e se beneficia do amplo apoio material e financeiro do Ocidente; mas não deixa de ser frágil, o que pode dificultar as suas ambições de reconquista.
O Exército russo
O mínimo que podemos dizer é que o exército russo não impressionou com seu desempenho na Ucrânia. Mesmo que as deficiências conhecidas persistam, dado seu desempenho na Síria, pode-se pensar que ele fez mais progressos. Mas o que conseguiu fazer no modo expedicionário com um pequeno volume de tropas, não pôde reproduzir em grande escala. No entanto, apesar das perdas e falhas, o exército russo está longe de ter entrado em colapso e ainda mantém a frente, embora deva travar principalmente batalhas urbanas, que são as mais complicadas e as mais caras de serem travadas.
Pontos fortes do Exército russo
- Capacidades globais: as forças armadas russas possuem praticamente todas as capacidades militares de uma grande potência, com equipamentos globalmente eficientes [4]. Caças, bombardeiros estratégicos, helicópteros de combate, mísseis, defesa antiaérea, força terrestre blindada, artilharia, frota de superfície, frota de submarinos… O exército russo tem capacidades militares muito amplas, muito superiores às do exército ucraniano. É capaz de atingir todo o território inimigo e proteger o seu próprio;
- Um exército que não está operando “totalmente”: para o poder russo, esta guerra é apenas uma “operação especial” à qual destinou recursos, certamente muito importantes, mas não completos. Seja em termos de material ou de mobilização, a Rússia poderia, em tese, fazer mais;
- Grandes estoques: a Rússia tem grandes estoques de equipamentos e munições [5], permitindo-lhe compensar suas perdas e suportar um volume de fogo muito sustentado sem depender de ninguém. Os estoques de equipamentos herdados da União Soviética foram mais ou menos bem preservados, mas agora são muito úteis para apoiar o esforço. Isso às vezes requer trazer equipamentos antigos de volta ao serviço ou disparar mísseis oficialmente retirados de serviço, mas no final o exército russo não carece de blindados, canhões, mísseis ou munição;
- Uma indústria de armas soberana: a Rússia produz a grande maioria de seu equipamento militar em casa. Depende, é claro, de suprimentos externos para certos componentes, mas eles geralmente não são críticos e alternativas podem ser encontradas no mercado. Consequentemente, e apesar das sanções ocidentais, a produção de mísseis modernos (Iskander, Kalibr, KH-101, KH-47, etc.) continua no mesmo ritmo de antes da guerra, de 40 a 50 mísseis por mês, assim como a produção aeronáutica militar. A produção/modernização de blindados (cerca de 50 blindados por mês) e munições foi aumentada. No entanto, as capacidades de produção são insuficientes para acompanhar o ritmo de consumo de munições e repor as perdas de material, mas os estoques disponíveis permitem suportar o diferencial. A Rússia também pode contar marginalmente com o apoio de aliados para supri-la com munições (Bielorrússia, Irã) e/ou certos componentes (China, Indonésia, Índia) necessários para sua produção militar;
- Autonomia energética: sendo a Rússia um grande produtor de petróleo e gás, é garantia de nunca faltar energia, tanto para a sua indústria como para o reabastecimento das tropas. Muitas vezes nos esquecemos disso, mas é um dos elementos essenciais para dar a um Estado a capacidade de sustentar um conflito a longo prazo. Em comparação, a Ucrânia é muito dependente dos europeus para o fornecimento de produtos petrolíferos, embora os suprimentos já sejam escassos para esses países devido às sanções impostas à Rússia;
- Economia resiliente: apesar das pesadas sanções aplicadas pelos países ocidentais, a economia russa resiste mesmo que inevitavelmente sofra as consequências. Na verdade, isso não chega a ser uma surpresa: historicamente, as sanções econômicas raramente são eficazes [6] para influenciar a política de um país. Quando o são, é contra países muito isolados no cenário internacional e com poucos recursos naturais, o que claramente não é o caso da Rússia;
- Poderoso dissuasor nuclear: o fato de a Rússia ser uma das duas potências nucleares mais importantes tem um impacto direto no apoio de que a Ucrânia pode se beneficiar. É provável que, se a Rússia não fosse uma potência nuclear, os países ocidentais teriam se engajado muito mais diretamente com a Ucrânia. Essa dissuasão também permite à Rússia preservar a integridade de seu território de qualquer agressão externa.
Pontos fracos do Exército russo
- Estrutura de comando de estilo soviético: o exército russo mantém muitas características do Exército Vermelho. A estrutura muito rígida e vertical de um comando muito centralizado deixa pouco espaço para iniciativas táticas. A supervisão também é insuficiente no nível júnior, com um corpo de suboficiais ainda muito limitado. Pela sua estrutura monolítica, é um exército que reage, aprende e se adapta mais lentamente;
- Soldados mal treinados e mal equipados: para além das unidades de elite que beneficiam de um equipamento de muito bom nível e qualidade, o grosso das forças russas apresentava um nível particularmente baixo de prontidão operacional, tendo muitas vezes, no equipamento individual (capacetes, proteção balística, miras…), velhos e em pouca quantidade. O exército certamente fez grandes esforços para modernizar seu equipamento de primeira linha, mas está longe de estar completo; muitos veículos blindados ainda datam da era soviética e a bagagem do combatente foi negligenciada. Além disso, a fraqueza do treinamento gera uma articulação e coordenação articular deficiente, inferior aos padrões ocidentais. Isso resulta em uma fragilidade no apoio do qual a infantaria poderia se beneficiar, o que contribui para aumentar as perdas no terreno;
- Falta de instrumentos de comando e controle: as deficiências nos meios de comunicação, em particular nos meios protegidos, prejudicam o reporte de informação e a divulgação de ordens. A coisa toda é agravada pela rigidez da cadeia hierárquica;
- Logística ainda falha: isso foi especialmente observado na primeira fase da ofensiva durante os rápidos e profundos avanços das colunas russas em território ucraniano. Os meios logísticos lutaram para acompanhar o ritmo e garantir um volume suficiente de abastecimento. Essa fraqueza dificulta fortemente as capacidades ofensivas do exército russo e a exploração de avanços no sistema inimigo. No entanto, como o exército russo está em posição defensiva, ou apenas fazendo pequenos avanços em um território apertado, os meios logísticos parecem acompanhar o ritmo;
- Força moral mais frágil: este é um ponto muito difícil de avaliar, mas é provável que a motivação dos russos nesta guerra seja significativamente menor do que a dos ucranianos. A vida cotidiana dos russos é pouco impactada e, por enquanto, não há realmente uma ameaça existencial pairando sobre o país. Na verdade, isso enfraquece as capacidades de mobilização dos homens e da economia por parte do governo russo, que não consegue realmente reunir todos os meios e todos os recursos disponíveis para sustentar esta guerra.
O exército russo sofre de certas deficiências estruturais profundas [7] prejudiciais às suas capacidades militares, no entanto, tem um potencial significativo (produção e estoques enormes) que lhe permite apoiar o esforço militar ao longo do tempo.
Considerações finais
Os dois exércitos que se enfrentam hoje na Ucrânia são muito diferentes e estão em um ponto de equilíbrio de poder. Do ponto de vista estritamente militar, e mesmo que o Ocidente fornecesse ainda mais materiais e equipamentos à Ucrânia, não é certo que esta pudesse obter uma ascendência suficientemente significativa sobre o seu adversário por motivos de recursos humanos, logísticos ou de formação. Por outro lado, o exército russo é constrangido em sua ascensão ao poder, tanto por razões políticas domésticas (mobilização) quanto por razões industriais.
Por falta de recursos industriais e mão de obra qualificada, a Rússia não consegue aumentar sua produção o suficiente para acompanhar o ritmo das operações militares. Pode e deve contar com seus estoques muito grandes de munições e equipamentos, mas eles não são inesgotáveis e, portanto, ela deve gerenciá-los, o que limita inevitavelmente a densidade de fogos. Assim como a Ucrânia, não é certo que a Rússia consiga levar vantagem sobre o adversário para conquistar todo o Donbass, até porque a densidade das áreas urbanas complica seriamente a tarefa.
Consequentemente, a evolução do conflito não está definida antecipadamente, cada um terá a sua ideia, mas nenhuma opção pode ser totalmente excluída para este segundo ano de guerra. A incerteza permanece, mas, do ponto de vista militar, provavelmente não se deve esperar uma rápida evolução do equilíbrio de poder em favor de um lado ou de outro, dadas as respectivas forças e fraquezas dos dois protagonistas.
Publicado no Cf2R.
*Olivier Dujardin tem 20 anos de experiência em guerra eletrônica e processamento de sinais de radar. Exerceu sucessivamente funções operacionais em guerra eletrônica, no estudo de sistemas de radar e guerra eletrônica, e na análise e coleta de sinais. Também atuou como especialista técnico em sistemas de coleta de dados.
Notas
[1] https://www.cerbair.com/fr/guerre-en-ukraine-les-drones-gagnent-leurs-galons/
[2] https://www.opex360.com/2023/02/14/pour-le-secretaire-general-de-lotan-lurgence-est-detre-en-mesure-dapprovisionner-larmee-ukrainienne-en-munitions/
[3] https://cf2r.org/reflexion/laide-occidentale-peut-elle-priverkiev-dune-victoire/
[4] https://velhogeneral.com.br/2022/11/15/o-desempenho-dos-sistemas-de-armas-russos/
[5] https://cf2r.org/rta/russie-munitions-guidees-stop-ou-encore/
[6] https://cf2r.org/rta/etre-un-pays-sous-sanctions-est-il-un-avantage-strategique/
[7] https://cf2r.org/rta/ukraine-larmee-russe-est-elle-nulle/
Boa tarde parabéns pelo trabalho.
Me parece que as forças armadas dos russos sofrem com erros de estratégia, planejamento e políticos.
Claramente o Kremlin tomou a decisão de entrar na Ucrânia devido a desastrada retirada do Afeganistão, não foi a única razão mas certamente foi a gota que transbordou o copo. Putin decidiu arriscar a sorte na Ucrânia pois considerou que os americanos e a OTAN não queriam e nem conseguiriam apoiar a Ucrânia a tempo de evitar seu colapso.
Os benefícios dessa ação cegaram os planejadores russos que foram encantados com países do leste europeu querendo fazer acordos e negociando sua neutralidade com os russos, e a cegueira dos planejadores virou cegueira dos militares russos que tb acreditaram poder vencer os ucranianos rápido, derrubando o governo e colocando a Ucrânia novamente na esfera de influência russa.
Ocorre que os russos esqueceram que a Ucrânia de 2022 não era a de 2014; se organizaram com não mais que 150mil soldados pois achavam que venceriam rápido e sairiam sem ocupar o pais, na mente russa, os ucranianos iriam virar a chave OTAN/RUSSIA rápido com um novo governo pró-russo.
Deu errado, a própria convocação de mobilização meses depois mostra que não havia intenção de permanecer na Ucrânia.
Os russos são fortes, mas não são tão fortes quanto sua propagando nos fez acreditar, e alias, fez eles próprios acreditarem, e ai começou os erros de preparação que vão se somando, e se multiplicando, em fim, deu ruim.