A competição entre EUA e China: Uma batalha em muitas frentes (Parte 1)

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Por Pablo del Amo*

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A luta pela liderança mundial entre Washington e Pequim é o principal evento geopolítico do nosso tempo, e marcará o futuro do sistema internacional a médio e longo prazo.


O mundo unipolar americano não existe mais. Essa hegemonia incontestável acabou já há alguns anos. Washington continua sendo a principal potência global, mas agora vemos o ressurgimento de novos atores como Rússia e Índia, levando à consolidação de uma ordem multipolar baseada na competição. Nessa nova estrutura que se vislumbra, a China se destaca especialmente como aspirante a destronar os Estados Unidos.

Estados Unidos e a China estão atualmente presos em uma competição sistêmica. Ambos são grandes potências por sua dimensão econômica e sua projeção internacional. O primeiro se destaca como o líder estabelecido do mundo ocidental baseado em um modelo de democracia liberal. O gigante asiático, por sua vez, apresentou um ritmo de crescimento sem precedentes nas últimas décadas sob seu sistema de socialismo com características chinesas. A luta pela liderança mundial entre Washington e Pequim é o principal evento geopolítico do nosso tempo, e marcará o futuro do sistema internacional a médio e longo prazo.

A ascensão da China

Desde que Deng Xiaoping introduziu a política de reforma econômica e abertura ao mundo exterior em 1978, a China passou por uma profunda transformação socioeconômica e militar. A estratégia do Pequeno Timoneiro significava promover a liberalização econômica abandonando a luta de classes que caracterizou o governo de Mao Tsé-Tung. Como consequência, nas últimas quatro décadas o país experimentou um boom espetacular em todas as áreas, conseguindo se posicionar como segunda potência mundial, superada apenas pelos Estados Unidos. Esse boom, da mesma forma, não tem sinais de fim: pode alcançar a primazia econômica até 2050, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi-se o “século da humilhação” – entre meados do século XIX e meados do século XX – período em que a China esteve sujeita aos desígnios de potências estrangeiras.

Durante anos, a estratégia da Europa e dos Estados Unidos em relação à China baseou-se no que os alemães chamam de Wandel durch Handel, mudança por meio do comércio. Em outras palavras, esperava-se que, abrindo os mercados e fortalecendo os laços econômicos, Pequim mudasse gradualmente seu modelo para uma democracia liberal de estilo ocidental, o que evidentemente não aconteceu. Com a hipotética mudança de modelo, Washington esperava alcançar maior influência na política interna do gigante asiático.


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A chegada ao poder de Xi Jinping em 2013 significou para a China uma nova dimensão internacional. Pequim viu a consolidação de seu poder e liderança mundial, apresentando-se como uma potência de primeira linha com uma mentalidade de política externa muito mais proativa e ambiciosa.

Neste contexto, ganha especial importância a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, Belt and Road Initiative), projeto que busca reviver os antigos laços comerciais que existiam entre Ásia, Oriente Médio, África e Europa durante as antigas rotas da seda. Um plano geoeconômico de grande escala cujo objetivo é modificar o equilíbrio de poder, com Pequim controlando o comércio e os fluxos de capital em torno de uma estrutura na qual o gigante asiático ocupa uma posição central. Nesse sentido, a China também pretende garantir sua segurança energética, já que o país é altamente dependente das importações de hidrocarbonetos.

Como objetivo geral, a grande estratégia da China visa garantir as capacidades necessárias para transformar as cadeias globais de valor e o equilíbrio de poder entre as potências. O sonho chinês, um slogan criado quando Xi Jinping chegou ao poder, envolve a transformação da economia chinesa, de economia voltada para exportações e mão de obra barata, para uma baseada no consumo doméstico, serviços e indústrias de alta tecnologia.

A elite chinesa, no entanto, está ciente de que o jogo pela liderança mundial não se joga apenas no campo econômico sendo a fábrica do mundo. Nos últimos anos, Pequim procurou alcançar a primazia militar no Leste Asiático com um contínuo rearmamento e modernização de suas Forças Armadas. Pequim está ciente de que precisa desenvolver uma frota de alto mar, uma força marítima capaz de operar em mar aberto com capacidade de desafiar a marinha dos EUA e salvaguardar seus interesses além dos mares próximos.

Em suma, a China acordou e agora seu objetivo é materializar a “grande revitalização da nação” para transformá-la “em um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, civilizado e harmonioso”. Em Washington, eles estão bem cientes da ordem chinesa, razão pela qual, para vários governos, destacaram a necessidade de um pivô asiático.


Crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) da China desde 1992 (BBC).

O pivô asiático-americano

Em 2011, a então secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, levantou a ideia do pivô asiático em um artigo. Essa estratégia destacou a necessidade de redirecionar a atenção, recursos e esforços para a região da Ásia-Pacífico, a fim de conter a ascensão da China. Essa mudança de paradigma estratégico foi marcada pela perda de influência e poder dos EUA, resultado de intervenções militares que não tiveram sucesso –como a ocupação do Iraque após a invasão em 2003– e os estragos causados ​​pela crise financeira 2008. Dessa forma, o lento recuo do Oriente Médio começou com o objetivo de acabar com as “guerras sem fim”, deixando claro que o futuro da política externa de Washington seria decidido na Ásia.

A capacidade americana de projetar poder se baseou em consolidar-se como uma enorme potência naval que protege as principais rotas comerciais do globo juntamente com o dólar como principal moeda do comércio internacional. Graças a ambos os recursos, Washington criou uma ordem sustentada por uma série de bens globais que permitiu a grande expansão econômica da globalização.

Nesse sentido, se os EUA querem continuar a ocupar uma posição hegemônica, precisam evitar ser deslocados da região de maior dinamismo e crescimento econômico do mundo: a Ásia-Pacífico. Em algumas décadas, se a China conseguir fazer a transição para uma economia de alta renda, poderá liderar um bloco econômico regional, deixando para Washington um papel marginal. Vale lembrar que um dos grandes objetivos do gigante asiático para 2049 – ano que comemora o centenário da proclamação da República Popular – é se tornar o principal polo de produtos de alta tecnologia.

Vendo o ressurgimento da China, Washington está adotando uma política de contenção enquanto busca manter o status quo na região. Nesse sentido, o governo Obama tentaria fortalecer seus laços com seus parceiros regionais como Japão, Coreia do Sul ou mesmo Filipinas. Mesmo assim, não se busca o confronto direto com Pequim. De fato, o multilateralismo continua a ser promovido em questões como a luta contra o terrorismo ou as mudanças climáticas.

A chegada de Donald Trump à Casa Branca representou uma continuidade da estratégia de contenção da China, mas com métodos diferentes daqueles da administração Obama. Trump levantou os motes “America First” e “Make America Great Again” com o objetivo de, por um lado, equilibrar a balança com a China e seus parceiros tradicionais e, por outro, pressionar os aliados europeus a gastar mais em defesa para que eles não sejam tão dependentes do guarda-chuva de segurança oferecido pelos Estados Unidos. Dessa forma, Washington poderia se concentrar mais no gigante asiático.

Além disso, com Donald Trump, a política externa dos EUA mudaria seu foco, passando da “guerra contra o terrorismo” para “a competição entre grandes potências” (Great Power Competition) com foco claro na Rússia e especialmente na China. De facto, se pressupõe a ascensão de outras potências emergentes com capacidade de desafiar a ordem liderada pelos Estados Unidos.

Em relação a Pequim, haveria a continuação do pivô asiático de Obama, embora com métodos mais agressivos. As prioridades de Washington seriam fortalecer as alianças com parceiros regionais no Indo-Pacífico, como o Quad – Índia, Austrália, Japão e Estados Unidos –, embora sem muito sucesso. O governo Trump também buscaria um acordo muito benéfico com a China, algo que fracassaria e levaria a uma guerra comercial em 2018.

Uma das principais políticas-quadro implementadas pelo governo Trump é a criação do Comando Indo-Pacífico dos Estados Unidos (USINDOPACOM) a partir de 2018, em substituição ao Comando do Pacífico (USPACOM). Esta decisão pretende não só dar maior importância à região do Sudeste Asiático e da Índia, mas também reforçar a estratégia dos EUA de conter a China na sua vizinhança imediata. Nesse sentido, Washington aplicará a Estratégia para um Indo-Pacífico Livre e Aberto voltado para o Mar do Sul da China – questão que será desenvolvida posteriormente – e estabelecerá um quadro de referência em conjunto com os parceiros regionais. No entanto, a decisão mais relevante que o governo Trump abordaria em relação à China seria a guerra comercial e tecnológica.


Shinzo Abe, Donald Trump e Malcolm Turnbull na cúpula da ASEAN em novembro de 2017. Japão, Estados Unidos e Austrália fazem parte do Quad (Andrew Harnik/AP Photo).

Guerra comercial e tecnológica

Como mencionado, Donald Trump buscava um acordo comercial muito favorável com a China, mas após o fracasso das negociações, o governo dos EUA lançou um conflito tarifário em 2018. Ainda assim, o verdadeiro motivo da “guerra” não é a questão comercial, mas parar e conter o gigante asiático para garantir a liderança dos EUA. Nesse sentido, a guerra comercial foi uma forma de prejudicar a esfera econômico-tecnológica chinesa, altamente dependente do Ocidente.

É no campo tecnológico que se joga um jogo importante com a chamada quarta revolução industrial que envolve uma ampla gama de setores como inteligência artificial, energias renováveis, robótica e inclui desenvolvimento militar. Embora obviamente também houvesse preocupações com o déficit comercial, Washington estava, em essência, tentando impedir a corrida tecnológica da China e, assim, enfraquecê-la como rival geopolítica.

As próprias ações dos EUA já mostram a importância de prejudicar a indústria de tecnologia chinesa ao impor tarifas de 25% sobre produtos como robótica, aeroespacial ou semicondutores. Além disso, Washington imporia restrições aos investimentos chineses em tecnologias sensíveis enquanto acusava Pequim de “roubar tecnologia”.

Donald Trump tenta lançar uma estratégia de maior dissociação econômica com a China. Uma política que ele também queria levar a seus parceiros, instando-os a rejeitar a rede 5G da Huawei. O 5G tornou-se um campo de batalha geopolítico entre as grandes potências devido à sua importância para o futuro da tecnologia, tanto civil quanto militar. Praticamente todos os países europeus limitaram ou restringiram a participação da empresa chinesa Huawei no desenvolvimento da rede 5G por motivos de segurança.


Cadeia de produção de semicondutores (Natixis).

Essa guerra comercial de desgaste ocorre durante meses, com Washington e Pequim impondo tarifas sobre seus produtos. Somente em 2020 será alcançado o Acordo de Fase 1. Tal acordo seria geralmente favorável a Washington, pois permite que os Estados Unidos mantenham a maior parte de suas tarifas sobre as exportações chinesas em troca de não aumentá-las ainda mais. Pequim, ao importar menos dos Estados Unidos, não poderia se dar ao luxo de acompanhar o ritmo americano de escalada na guerra comercial, daí a necessidade de um acordo.

A China só queria uma trégua sabendo que na época não tinha capacidade para enfrentar Washington em uma disputa aberta. Pequim é clara quanto ao cumprimento dos objetivos da estratégia “Made in China 2025” e até 2049 se tornar a fábrica do mundo, a fim de rivalizar com a indústria dos EUA, da qual ainda dependem em principais chave. De sua parte, o presidente Donald Trump estava sob pressão tanto de empresas americanas que viram seus lucros caírem quanto de membros de seu governo à medida que as eleições presidenciais se aproximavam. O acordo serviu aos Estados Unidos para cumprir objetivos mínimos de desacelerar o crescimento chinês, alcançar objetivos econômicos favoráveis ​​e agora partir de uma posição vantajosa graças à guerra comercial.

Ao mesmo tempo em que se desenrolava a guerra comercial, o governo Trump mirava as principais empresas de tecnologia chinesas, ZTE e Huawei, ambas classificadas como ameaça à segurança nacional pelo Congresso dos EUA em 2012. O Departamento de Comércio decide para impor sanções à ZTE acusando-a de violar sanções ao Irã e à Coreia do Norte. A empresa chinesa, devido à sua dependência das importações de componentes essenciais, aceita as condições de Washington após a pressão a que está sujeita.

No entanto, a Huawei, com maior resiliência, daria mais batalha aos Estados Unidos. Meng Wanzhoy, diretora financeira da Huawei, seria presa no Canadá a pedido dos EUA, e o governo Trump proibiria a compra de hardware chinês, enquanto a Google suspenderia a capacidade da Huawei de usar o sistema operacional Android. Ainda assim, a Huawei demonstraria maior autonomia que a ZTE tanto nas importações como em sua importância no mercado norte-americano. Além disso, muitas empresas americanas dependem de compras da Huawei, razão pela qual foi finalmente decidido estender diferentes medidas contra a empresa chinesa, ainda mantendo a guerra de atrito.


Leia a Parte 2 deste artigo.


Publicado em Descifrando la Guerra.


*Pablo del Amo é licenciado em História e mestre em Cooperação Internacional pela UCM. Seus principais interesses são relações internacionais e geopolítica.

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2 comentários

  1. A China é hoje, muito mais que um país socialista, eles são apesar dos discursos ideológicos muito mais nacionalistas do que outra coisa, pois o pragmatismo com que agem os aproxima mais da tendência nacionalista do que do socialismo clássico descrito na ideologia marxista.
    São na realidade um país com um governo forte, que direciona os recursos do estado, e da iniciativa privada para o desenvolvimento de áreas vitais no crescimento científico e tecnológico da China.
    As restrições do governo americano, para conter o crescimento da China, são inócuos, pois lá são formados anualmente milhares de engenheiros, técnicos e cientistas das mais variadas áreas.
    Possuem dinheiro, recursos e cérebros, para desenvolverem nano chips, semi condutores sensíveis, é tudo uma questão de tempo para eles.
    Pois quem já desenvolveu sozinho tecnologia aeroespacial, e colocou um astronauta em órbita, quem já enviou sondas para a Lua, Marte, e está construindo uma estação orbital também sozinha, tem condições tranquilas de conseguir sua emancipação na produção de nano chips, eles não tem pressa…

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