Katrina vanden Heuvel*
Quando os ministros da Defesa de 40 países se reuniram na Alemanha, no mês passado, o foco não era um acordo de paz, mas a vitória da Ucrânia ou pelo menos o “enfraquecimento permanente” do poder militar da Rússia.
Quais são os objetivos dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia? O secretário de Defesa Lloyd Austin anunciou recentemente que os EUA querem “a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisa que fez ao invadir a Ucrânia”. O compromisso de Washington nesse sentido tem sido substancial. O Congresso aprovou a Lei de Empréstimo-Arrendamento da Defesa da Democracia da Ucrânia por votação quase unânime, invocando o “arsenal da democracia” fornecido à Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. O presidente Biden está buscando US$ 33 bilhões em ajuda adicional. Quando os ministros da Defesa de cerca de 40 países se reuniram na Base Aérea de Ramstein, na Alemanha, no mês passado, o foco não era um acordo de paz, mas a vitória direta da Ucrânia ou pelo menos o “enfraquecimento permanente” do poder militar da Rússia.
Mas à medida que a violência continua, a febre da guerra aumenta e é melhor sermos claros sobre os objetivos. O compromisso com uma longa e desgastante guerra por procuração com a Rússia teria consequências graves não apenas para o povo ucraniano, mas também para os interesses de segurança dos Estados Unidos e seus aliados.
A resistência dos ucranianos à invasão russa não deve nos cegar para o custo horrendo em vidas e propriedades. Assombrosos 28% da população da Ucrânia foi deslocada, seja internamente ou para o exterior. Se a guerra continuar, esse percentual aumentará.
Cerca de um terço da infraestrutura básica da Ucrânia – estradas, ferrovias, pontes – foi danificada ou demolida. Tal destruição continuará. A economia da Ucrânia deve se contrair quase pela metade este ano. Mesmo que a guerra parasse amanhã, reconstruir o país e retornar aos níveis de produção anteriores à guerra exigiria anos e centenas de bilhões de dólares.
Além disso, em um momento em que a economia mundial já estava arruinada pela pandemia de coronavírus, a guerra e as sanções impostas à Rússia estão aumentando os deslocamentos globais. No ano passado, a Rússia foi o maior exportador mundial de gás natural, o segundo maior exportador de petróleo bruto e o terceiro maior exportador de carvão. Lidera o mundo no enriquecimento de urânio para usinas nucleares. Não surpreendentemente, o preço do combustível disparou desde a invasão. Os aliados dos EUA na Europa são particularmente atingidos. Enquanto isso, os cidadãos dos EUA sofrem com o aumento dos preços nos mercados globais de aço, alumínio, baterias de carros, chips de computador e muito mais. Inevitavelmente, isso começará a corroer o apoio à guerra – assim como o custo crescente de sustentá-la.
A Rússia e a Ucrânia juntas fornecem 30% do trigo e 20% do milho para os mercados globais, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos da ONU, bem como três quartos do óleo de girassol do mundo e um terço da cevada. A Rússia também é produtora-chave dos produtos que compõem fertilizantes.
No hemisfério ocidental, muitos países latino-americanos já enfrentam escassez de fertilizantes, com as colheitas do Brasil particularmente em risco. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, 14 nações africanas dependem da Rússia e da Ucrânia para metade de seu trigo, com Eritreia (100%), Somália (mais de 90%) e Egito (quase 75%) no topo da lista. Uma guerra contínua poderia condenar mais de 47 milhões de pessoas à fome aguda, estimam especialistas.
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Inevitavelmente, o conflito contínuo fortalece os falcões tanto nos Estados Unidos quanto na Rússia – e torna qualquer acordo mais difícil. Para justificar os custos crescentes, cada um deve despertar fervor patriótico e enfatizar as apostas. Arsenais nucleares aparecem em segundo plano. Durante as décadas da Guerra Fria, Washington e seus aliados trabalharam para evitar uma guerra com a Rússia, permanecendo de prontidão mesmo enquanto a Rússia reprimia movimentos de independência na Tchecoslováquia e na Hungria. Então, autoridades agora falarem sobre o enfraquecimento permanente da Rússia é imprudente ao extremo.
Se Biden receber seus US$ 33 bilhões, os Estados Unidos terão dedicado US$ 47 bilhões em armas e ajuda à Ucrânia desde o início da invasão. Ou seja, como William Hartung e Ben Freeman observaram na revista online Responsible Statecraft, quase tanto quanto todo o orçamento do departamento de Estado e mais do que o governo Biden está se comprometendo para enfrentar as mudanças climáticas.
Por isso é vital dar um passo atrás das emoções provocadas pela guerra e avaliar as reais prioridades de segurança dos EUA. Os americanos têm desafios de segurança muito maiores – incluindo a pandemia e o contágio global, as mudanças climáticas, os desafios impostos pela China e o imperativo de reconstruir sua economia e sua democracia. A resistência da Ucrânia capturou a atenção e simpatia, mas sua importância pode ser mais bem calculada em relação a esses outros assuntos.
Se a Rússia conquistar todo o Donbass, como agora parece ser a intenção de Vladimir Putin, Moscou pode estar mais pronta para falar sobre um acordo. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, os Estados Unidos e a OTAN teriam que decidir se incentivam as negociações. Zelensky apresentou elementos de um acordo de compromisso na primeira semana de conflito; como a violência continuou, sua posição endureceu. Washington pode precisar se direcionar para seu próprio interesse em acabar com a guerra, ao invés de uma resistência a todo custo.
Qualquer acordo exigiria, sem dúvida, a retirada das forças russas, provavelmente em troca da neutralidade ucraniana e integridade territorial, reconhecimento do controle da Crimeia pela Rússia e algum tipo de status federado para as províncias separatistas no leste da Ucrânia. E as sanções, sem dúvida, precisariam ser levantadas.
Os Estados Unidos e seus aliados devem deixar claro agora para Zelensky, Rússia, China e Índia – isto é, reconhecendo a geopolítica de uma futura arquitetura de segurança – que saúdam um acordo que preserve a soberania da Ucrânia, mas que também encerre a guerra mais cedo, ao invés de mais tarde. Esse é o real interesse de segurança.
Artigo produzido pela Globetrotter.
*Katrina vanden Heuvel é diretora editorial e editora da Nation e presidente do Comitê Americano para o Acordo EUA-Rússia (ACURA).