Por Boaventura de Sousa Santos*
Guerras de informação são sempre baseadas em uma mistura de verdades seletivas, meias verdades e mentiras descaradas.
A mídia do Atlântico Norte está enredada em uma guerra de informação sem precedentes. Caracteriza-se por uma erosão implacável da distinção entre fatos e manipulação de emoções e percepções, entre conjecturas e verdades inatacáveis.
Eu vi esse tipo de guerra de informação nos Estados Unidos em primeira mão durante os últimos anos da guerra no Vietnã e no período que antecedeu a guerra no Iraque – ambas impulsionadas por fraudes políticas que levaram a vários crimes de guerra.
A manipulação das notícias sobre a guerra da Rússia na Ucrânia visa impedir que a opinião pública busque uma paz duradoura tanto para a Ucrânia quanto para a região. O objetivo desta guerra de informação é prolongar o conflito na Ucrânia para servir aos interesses daqueles que desejam promovê-la.
Como saber o que constitui fatos e o que constitui mentiras, e como se pode aprender a explicar eventos sem ser acusado de justificação?
Causas que levam à guerra
Para demonizar seus inimigos, você deve primeiro desumanizá-los. Eles devem ser definidos como tendo agido de forma criminosa e sem provocação.
Eu condenei incondicionalmente a invasão ilegal da Ucrânia, mas continuo interessado em saber como chegamos a este ponto. O livro de 2019 do falecido Stephen Cohen, War With Russia? fornece uma análise aprofundada das relações entre os Estados Unidos e a Rússia desde o fim da União Soviética e a dinâmica dessas relações com relação à Ucrânia desde 2013.
Cohen considerou o conflito na Ucrânia uma “guerra por procuração”, mas que envolveu “muitos treinadores, monitores e possivelmente combatentes americanos e russos”. Ele nos lembrou das guerras na Geórgia (2008) e na Síria (2011).
“O risco de um conflito direto” entre os Estados Unidos e a Rússia “continua a crescer na Ucrânia”, escreveu Cohen em seu livro em 2019.
Democracias e autocracias
O governo dos EUA vê o mundo dividido em democracias e autocracias. Os governos considerados por Washington como hostis a ela são definidos como autocracias.
Para sua Cúpula para a Democracia, realizada em dezembro de 2021, os Estados Unidos, por exemplo, não convidaram a Bolívia, embora o país tenha passado recentemente por um processo eleitoral. Enquanto isso, convidaram o Paquistão, as Filipinas e a Ucrânia, embora o governo dos EUA tenha dito que tinha dúvidas sobre esses estados (no caso da Ucrânia, apenas alguns meses antes, os Pandora Papers revelaram a profundidade da corrupção na elite ucraniana, que incluía o presidente Volodymyr Zelensky).
Como a Ucrânia representava a luta da “democracia” contra a “autocracia” russa, Zelensky foi convidado para a cúpula.
O conceito de “democracia” é roubado de grande parte de seu conteúdo político e armado para fins de promover mudanças de governo que sejam benéficas para os interesses globais dos Estados Unidos.
Ameaças reais e fabricadas para justificar a guerra
Embora as afirmações exageradas do presidente russo Vladimir Putin sobre a ameaça do nazismo na Ucrânia que ele usa para tentar justificar sua invasão ilegal da Ucrânia não sejam válidas, vale a pena examinar os elementos paramilitares de extrema-direita e o recrutamento de combatentes estrangeiros que impregnaram a Ucrânia.
Não é impensável que o armamento e o financiamento pela Europa e pelos Estados Unidos de forças ucranianas voltadas para a democracia, mesmo que essa ajuda não seja direcionada a milícias extremistas de extrema direita conhecidas na Ucrânia, ainda possa sangrar. Existe o risco de que extremistas de extrema-direita ganhem uma posição, e que não se limite apenas à Ucrânia.
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Em uma entrevista de 1998 para o L’Obs, anteriormente conhecido como Le Nouvel Observateur, Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança nacional do ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, disse que em 1979, os Estados Unidos “conscientemente aumentaram a probabilidade” de a URSS invadir o Afeganistão, na esperança de dar à antiga União Soviética “sua guerra do Vietnã”.
Da mesma forma, em fevereiro deste ano, a ex-secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, disse à MSNBC que esperava que os Estados Unidos fizessem com a Rússia na Ucrânia o que fizeram com a Rússia no Afeganistão.
O secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, disse que esta guerra “pode durar muito tempo, muitos meses, até anos”, o que deveria ter disparado alarmes entre os líderes políticos da Europa.
As consequências de uma segunda guerra ao estilo do Vietnã pela Rússia podem ser desastrosas tanto para a Ucrânia quanto para os europeus. A Rússia, que faz parte da Europa, não será uma ameaça para o continente, a menos que a Europa se transforme em uma enorme base militar dos EUA. Portanto, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte é a verdadeira ameaça que a Europa enfrenta.
Padrões duplos para a adesão ao pacto internacional
Transformada em mera caixa de ressonância das escolhas estratégicas dos EUA, a União Europeia defende o direito da Ucrânia de ingressar na OTAN como expressão legítima de valores universais (e valores europeus, mas não menos universais por isso).
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos intensificaram a integração com a Ucrânia, como foi visto na Carta de Parceria Estratégica EUA-Ucrânia de novembro de 2021.
É de se perguntar se os líderes da Europa estão cientes de que o reconhecimento do direito da Ucrânia de aderir a um pacto militar como a OTAN está sendo negado a outros países pelos Estados Unidos.
Mesmo que os líderes europeus estejam cientes de que os EUA estão negando esse direito a outros países, isso não fará diferença, dado o estado de estupor militarista em que se encontram.
Assim, por exemplo, quando a pequena nação das Ilhas Salomão, no Oceano Pacífico, aprovou um acordo preliminar de segurança com a China em 2021, os EUA responderam imediatamente e com alarme enviando altos funcionários de segurança à região para impedir a intensificação da competição de segurança no Pacífico.
A verdade vem tarde demais
As guerras de informação são sempre baseadas em uma mistura de verdades seletivas, meias verdades e mentiras descaradas (chamadas de bandeiras falsas), organizadas com o objetivo de justificar as ações militares daqueles que as promovem.
Não há dúvida de que uma guerra de informação está agora sendo travada tanto pelo lado russo quanto pelo lado americano/ucraniano, mesmo que, dado o nível de censura que está sendo imposto às pessoas em todo o mundo que consomem essas informações, ainda saibamos menos sobre o que acontece do lado russo.
Mais cedo ou mais tarde a verdade surgirá, a tragédia é que inevitavelmente será tarde demais. Neste início conturbado de um novo século, temos uma vantagem: o mundo perdeu sua inocência.
O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, por exemplo, está pagando um alto preço por ter ajudado no processo de descoberta da verdade. Para aqueles que não desistiram de pensar por si mesmos, recomendo o capítulo intitulado Lying in Politics no livro de Hannah Arendt, de 1972, Crises of the Republic.
Com esta brilhante reflexão sobre os Pentagon Papers, Arendt oferece dados exaustivos sobre a Guerra do Vietnã (incluindo muitos crimes de guerra e muitas mentiras), reunidos por iniciativa de Robert McNamara, um dos principais responsáveis por aquela guerra, que também atuou como secretário de Defesa sob dois presidentes dos EUA durante esse período.
Silêncio
Quando conflitos armados ocorrem na África ou no Oriente Médio, os líderes europeus são os primeiros a pedir o fim das hostilidades e a declarar a necessidade urgente de negociações de paz. Por que então, quando ocorre uma guerra na Europa, os tambores da guerra batem incessantemente, e nenhum líder pede que sejam silenciados e que a voz da paz seja ouvida?
Este artigo foi produzido pela Globetrotter, que o disponibilizou ao Velho General.
*Boaventura de Sousa Santos é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor-visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. É diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.