Por Daniel Davis*
Na mais sangrenta guerra na Europa em quase cem anos, não existem “boas” soluções, e os líderes da Ucrânia devem escolher entre opções desagradáveis em busca da menos ruim.
Na segunda-feira (25 de abril), o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse que um objetivo dos EUA em seu apoio à Ucrânia era “enfraquecer” a Rússia. O ex-comandante da OTAN, general Wesley Clark, disse recentemente à CNN que uma forma de atingir esse objetivo é enviar à Ucrânia “500 tanques, alguns milhares de peças de artilharia e foguetes”. E, ele acrescentou, “temos que mover (todos esses tanques e peças de artilharia) se quisermos quebrar” a ofensiva da Rússia no Donbass.
Embora possa parecer evidente que a Ucrânia poderia derrotar a Rússia se o Ocidente fornecesse um grande número de tanques1 à frente de combate com rapidez suficiente, as dificuldades e os desafios das realidades do combate tornam esse resultado altamente improvável. Na melhor das hipóteses para a Ucrânia, levaria quase um ano para ela ser capaz de produzir uma capacidade de combate blindada forte o suficiente para expulsar o exército russo do território ucraniano – e conforme explicado a seguir, mesmo com essas armas, a Ucrânia pode ainda não conseguir.
1 Na nomenclatura do Exército Brasileiro, “carro de combate”. Mantivemos o termo “tanque” do texto original em inglês.
Situação tática atual na Guerra Russo-Ucraniana
Primeiro, vamos considerar a situação militar no leste da Ucrânia hoje.
O maior combate em andamento no momento é a Batalha de Donbass, na qual até 50.000 soldados ucranianos estão se defendendo contra um ataque russo de mais de 70.000 homens. O exército de Putin está tentando manter o centro de uma frente de 300 milhas com uma parte de sua força, tentando penetrar ao norte das defesas da Ucrânia com tropas blindadas que se reposicionaram de Kiev e avançando ao sul com tropas recentemente redistribuídas de Mariupol.
A Rússia está realizando dois esforços para apoiar este combate principal, realizando ofensivas limitadas contra Kharkiv ao norte e na região de Kherson no sul da Ucrânia. A intenção dessas duas ações parece ser projetada para manter parte significativa das Forças Armadas Ucranianas (UAF, Ukrainian Armed Forces) no local para impedi-las de atacar os flancos das tropas russas que atacam a frente de Donbass. Enquanto isso, outros contingentes de tropas da UAF estão defendendo a costa perto de Odessa e perto de Kiev para se proteger contra quaisquer incursões futuras vindas da Crimeia ou da Bielorrússia.
Embora o governo ucraniano tenha colocado um embargo estrito à suas perdas em combate, o mais provável é que sofreu níveis semelhantes aos dos russos, relatados como mais de 40.000 mortos e feridos. Exceto pela possibilidade de manter alguma força de reserva estratégica, com toda a probabilidade a Ucrânia tem todas as suas forças armadas decisivamente engajadas em todo o país.
Em segundo lugar, para gerar uma força de ataque móvel e blindada com força suficiente para desalojar as tropas russas de suas posições atuais, Kiev precisaria tomar uma série de medidas críticas. No topo da lista, é claro, está a aquisição de um número suficiente de veículos blindados: tanques, peças de artilharia, lançadores de foguetes, sistemas de defesa aérea, transportadores de munição e combustível e outros kits relacionados.
Para serem eficazes, essas armas devem ser algo próximo da interoperabilidade, ter requisitos de manutenção semelhantes e ser suficientemente fáceis de operar para exigir um tempo mínimo de treinamento. Idealmente, isso significaria obter todos os tipos de sistemas de combate que a Ucrânia já usa há décadas.
Embora possa parecer bom adicionar alguns obuseiros americanos modernos, tanques alemães e sistemas antiaéreos britânicos, por exemplo, tentar enxertar essas plataformas em um sistema projetado para fornecer e manter uma força da era soviética seria construir desafios e obstáculos, se por nenhum outro motivo, cada um exigiria seus próprios mecânicos treinados em separado para manter e reparar, e tipos de munição distintos de todos os seus outros sistemas; nenhum sistema logístico poderia acomodar adequadamente tal disparidade.
Terceiro, e mais significativo: uma vez que vencidos os desafios de obter equipamentos que possam ser operados e mantidos pelas tropas da UAF, a Ucrânia precisaria gerar uma nova safra de soldados treinados quase do zero. Como observado acima, todo o exército ucraniano está atualmente engajado em combates ferozes em todo o país. Kiev não tem mão de obra para tirar essas tropas treinadas da linha de frente e enviá-las a algum lugar para serem treinadas. Novas forças teriam que ser geradas, fora do contato, enquanto as tropas existentes tentam manter a linha contra os ataques da Rússia. Essa é uma tarefa muito mais assustadora do que parece.
Eis o porquê.
Desafios de treinar tropas ucranianas para usar novas armas pesadas do Ocidente
Como qualquer tarefa militar, é preciso começar com o estado final desejado em mente. Para ter uma chance de eventualmente expulsar as tropas russas de seu território, a Ucrânia precisará de um número significativo de brigadas mecanizadas eficazes. Cada brigada mecanizada consistiria em uma mistura de tanques, infantaria, artilharia e companhias de defesa aérea (além de unidades de manutenção e logística, é claro). Para produzir um sistema dessas unidades que possa combater efetivamente, no entanto, o processo começa no nível do soldado individual.
Primeiro, vamos pegar o tanque. Os tanques T-64 e T-72 de estilo soviético, que a UAF usa há décadas, são operados por uma tripulação de três militares: o motorista, o artilheiro e o comandante. Cada um desses indivíduos primeiro precisa aprender a fazer seu trabalho e fazê-lo bem. O artilheiro deve saber como operar os vários sistemas de controle de tiro, miras e técnicas para engajar alvos. O motorista deve ser proficiente no manuseio do veículo maciço, entender onde o tanque pode e não pode manobrar, como controlar o veículo e responder às ordens do comandante.
De sua parte, o comandante deve conhecer as capacidades e limitações do tanque, assim como o motorista, deve saber como desempenhar as funções do artilheiro e, então, entender como “combater com o tanque” em todas as circunstâncias ambientais em que o tanque pode ser ordenado a operar.
Depois que essas posições individuais forem dominadas, é preciso aprender a combater em equipe, o que é crucial para o desempenho do tanque. O próximo passo na formação de uma unidade blindada é construir o pelotão, que é a unidade tática que enfrenta o inimigo. É tipicamente composto por três a quatro tanques, liderados por um tenente servindo como líder de pelotão.
Em seguida, o pelotão de tanques precisa aprender a lutar como parte de uma companhia de tanques, composta de três a quatro pelotões de tanques. A companhia de tanques geralmente é comandada por um capitão. O comandante da companhia, acompanhado pelo seu suboficial superior e outros sargentos, deve fazer com que os pelotões possam combater como uma equipe coordenada, garantindo que cada pelotão cumpre o seu papel, mas também deve conhecer as diferentes tarefas que deve atribuir aos outros pelotões para que todos trabalhem em uníssono para atingir um único objetivo.
Depois disso, a companhia de tanques precisa aprender a combater em conjunto dentro do batalhão, geralmente comandado por um tenente-coronel. na missão maior, que pode ser qualquer coisa do esforço principal, um esforço de apoio, apoio de flanco ou como reserva tática. O mesmo acontece um nível acima com batalhões trabalhando dentro de uma brigada.
Cada um desses escalões, do pelotão à brigada, deve ser dominado para que a força de batalha seja bem-sucedida em combate. Como observei pessoalmente na década de 1990, como parte do 2º Regimento de Cavalaria Blindada (2º ACR, Armored Cavalry Regiment), baseado na Alemanha, treinar uma unidade de brigada em tempos de paz é muito demorado.
Quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait em agosto de 1990, o presidente George H. W. Bush ordenou que o 2º ACR fosse implantado no Oriente Médio, juntamente com centenas de milhares de outras unidades dos EUA. Tivemos que nos retreinar do terreno e cenários europeus para cenários desérticos e iraquianos o mais rápido possível.
Passamos seis meses inteiros disparando armas e treinando com os equipamentos e as tripulações que iriam lutar a guerra antes do início da Operação Tempestade no Deserto no final de fevereiro de 1991. Executamos o treinamento final de manobra nos desertos sauditas, em pelotão, companhia, batalhão, e finalmente em nível regimental (brigada).
Tudo isso foi feito sem contato com o inimigo, usando o equipamento com o qual treinamos por anos, que foi totalmente mantido e liderado por oficiais e sargentos com décadas de experiência combinada. Mesmo assim, observei pessoalmente que nem todas as unidades americanas tiveram um bom desempenho. Alguns eram nada menos que brilhantes em combate, enquanto outros eram hesitantes e outros ainda completamente fracos. Para a Ucrânia formar uma força de combate eficaz, eles não terão nenhuma das vantagens que tivemos.
Os cálculos frios das realidades de combate
Para construir seu exército, a Ucrânia teria que treinar novas tropas que não estão atualmente em combate. Seria difícil, mas definitivamente factível, treinar novos recrutas em tarefas de nível de tripulação de tanques operacionais, artilharia e outros equipamentos de combate em um prazo acelerado. Além disso, no entanto, há um custo crescente em aparar arestas e encurtar prazos.
Por exemplo, no exército americano, um comandante de companhia normalmente tem cinco a seis anos de experiência no nível de pelotão antes de assumir as rédeas de uma companhia de tanques. Um comandante de batalhão deve ter pelo menos 16 anos de experiência e um comandante de brigada, 22 anos. O exército ucraniano praticamente não existia há oito anos, então nenhum oficial terá muito mais experiência do que um comandante de companhia nos EUA, mas mesmo isso subestima o desafio.
Durante a maior parte dos oito anos desde 2014, a grande maioria do treinamento e das operações da UAF foi em guerra de trincheiras estática, no estilo da Primeira Guerra Mundial; poucos oficiais ou homens têm experiência no comando de unidades de tanques ou infantaria em operações móveis. Embora os oficiais possam aprender muitas coisas, a experiência não pode ser transmitida; tem de ser ganha ao longo de um período de anos. Considere as ramificações da tarefa monumental que Kiev enfrenta hoje.
O governo Zelensky deve descobrir como treinar várias brigadas mecanizadas enquanto praticamente todo o seu exército está defendendo ativamente o país. Isso significa que Kiev terá que reduzir todos os aspectos do treinamento e tentar simplesmente enviar tanques, peças de artilharia e sistemas de defesa aérea para as linhas de frente, enquanto as tropas lutam ativamente, na esperança de que o equipamento adicional lhes permita formar potencial ofensivo para lançar as contraofensivas necessárias para expulsar as tropas russas do território que atualmente possuem.
Ou exigirá que a Ucrânia mantenha as linhas contra os ataques da Rússia em todo o país para formar uma nova organização blindada, do zero, em um terceiro país ou em uma parte relativamente segura do oeste da Ucrânia. Nesse local seguro, as tropas teriam que realizar muitos meses de treinamento, mesmo de forma acelerada, fora de contato com o inimigo, para que depois pudessem ser levadas à luta com força total.
Obviamente, qualquer um desses cenários não poderia ser iniciado até que a Ucrânia recebesse um conjunto abrangente de equipamentos de combate dos países ocidentais, tivesse o equipamento ajustado aos padrões operacionais e fornecido com grandes estoques de combustível e munição (necessários para sustentar a fase de treinamento e depois uma campanha ofensiva sustentada). Só a montagem dos equipamentos e sustentação levaria de três a quatro meses, e isso só depois que os países ocidentais tomassem a decisão de fornecer um kit específico. Só então poderiam começar os meses de treinamento individual, tripulação, pelotão, companhia e batalhão – também medidos em meses.
Haverá a tentação de tratar isso como uma brigada de incêndio: se a casa estiver pegando fogo, você organiza tudo o que pode, joga tudo no fogo assim que fica disponível e espera poder extinguir o incêndio. Muitos vão querer apressar cada tanque, peça de artilharia, lançador de foguetes ou míssil antiaéreo para a frente assim que estiver disponível, para reforçar a capacidade de combate das tropas agora. Embora essa seja uma tentação compreensível, tal procedimento teria poucas chances de sucesso.
A guerra simplesmente não funciona assim. Não se trata apenas de ter vários tanques ou lançadores de foguetes, mas de ter tropas treinadas e disciplinadas que sabem o que estão fazendo, trabalhando em equipe, em várias unidades de combate trabalhando para um único objetivo. Não é diferente de uma equipe esportiva. É possível reunir um grupo de atletas craques em um time, mas se eles não treinarem juntos para que cada um trabalhe em equipe, até mesmo craques podem ser derrotados por um adversário que tem menos talento, mas funciona melhor em conjunto.
Conclusão
Em certo nível, é completamente compreensível que Zelensky busque de forma agressiva armas pesadas para suas forças. Mas os fundamentos de combate não se impressionam com as emoções, a justeza da causa de alguém ou a seriedade com que um lado pode desejar um determinado resultado. Se armas pesadas forem inseridas na zona de guerra aos poucos, enviadas para as linhas de frente à medida que entrarem, elas adicionarão apenas uma capacidade marginal às unidades engajadas na frente de combate.
Mais importante, levará muitas semanas ou meses até que volumes significativos de armas pesadas possam ser entregues às unidades de combate ucranianas. Escolher treinar novas unidades de combate do zero, fora do contato, daria à Ucrânia uma chance melhor de produzir uma força de batalha forte o suficiente para expulsar as forças russas, mas isso levaria, muito provavelmente, de nove meses a um ano – e não está claro se as tropas ucranianas atualmente sob fogo poderiam manter a linha por tanto tempo.
A feia conclusão é esta: a Batalha de Donbass quase certamente será vencida ou perdida com as forças engajadas nas linhas de frente hoje, usando o equipamento que têm. Levará muito tempo para que os governos ocidentais apresentem um plano de equipamento coerente e depois preparem, enviem e entreguem o kit ao seu destino em um prazo que possa fornecer às tropas de Kiev a capacidade de pender a balança contra a Rússia no Donbass.
A Ucrânia pode ser forçada a fazer uma escolha entre opções horríveis. Zelensky poderia jogar os dados e tentar criar um impasse para manter a Rússia sob controle por quase um ano e então montar uma ofensiva com uma força de batalha treinada, ou buscar um acordo negociado nas melhores condições disponíveis para impedir a destruição de seu exército e pessoal.
Tentar forçar e sustentar um impasse garantiria que o povo da Ucrânia continuasse a sofrer e morrer e sua economia permanecesse estagnada no futuro próximo, sem garantia de que a criação de uma força ofensiva seria bem-sucedida mais tarde (e empregá-la necessariamente aumentaria as baixas novamente). Concordar com um acordo negociado no curto prazo provavelmente cimentaria a perda de algum território do leste ucraniano para a Rússia ou para a população de língua russa, mas encerraria a destruição no resto do país.
A guerra é um caldeirão horrível que raramente produz vencedores, e esta é a mais feia, mais sangrenta e mais cruel da Europa em quase um século. Todos devem entender que neste momento não existem “boas” soluções. Os líderes da Ucrânia devem escolher entre uma série de opções desagradáveis em busca da menos detestável.
Não invejo a tarefa deles.
Publicado no 19fortyfive.com.
*Daniel L. Davis é tenente-coronel aposentado do Exército dos EUA, tendo sido enviado a zonas de combate quatro vezes. É autor de “The Eleventh Hour in 2020 America”.
Grande artigo! Espero que o Brasil aprenda com essa guerra 🙂
(Z) Elensky tem demonstrado basicamente duas coisas: que sua incapacidade/incompetência em administrar o país em tempos de paz, e que conduzia a Ucrânia a uma situação de miséria crescente, não poderia se amplificar senão em tragédia em tempos de guerra.
E que ele de fato não administra os rumos de seus país nesta guerra, mas assumiu, ou melhor, deu continuidade ao seu papel de títere dos interesses estadunidenses conluiados a personagens poderosos da Ucrânia que o alçaram de um comediante inexpressivo a um milionário das comunicações e posteriormente presidente do país.
Qualquer um que não faça parte da massa de manobra manipulada pela grande mídia vê o que está ocorrendo. Os eua e seus aliados elevaram esta guerra à condição de fonte de recursos permanente para suas indústrias militares, com o intuito de prorrogá-la por anos a fio.
Já foi noticiado que assessores disseram a sleep joe que o negócio da guerra no Afeganistão tinha se esgotado e que uma guerra na Europa seria muito mais interessante para sua indústria militar.
E isto só está sendo possível tendo a (Z)Elensky como marionetes de seus interesses.
Os próprios militares estadunidenses dizem que não há mágica que possa reverter draticamente o curso desta guerra para uma vitória da Ucrânia, portanto a coisa toda para a administração Biden é sobre lucrar com isto ao máximo. E obviamente a população da Ucrânia para eles vale tanto quanto a da Síria ou Iraque.