Por Dmitry V. Shlapentokh*
Ao remover a Rússia de sua posição de player global, o Ocidente elimina um contrapeso à China e garante a predominância do Império do Meio em um futuro não tão distante.
A tentativa do Ocidente de marginalizar a Rússia e expulsá-la do sistema econômico ocidental pode muito bem funcionar. Ainda assim, uma Rússia mais fraca não teria escolha a não ser abraçar a China. E isso ajudaria Pequim a atingir predominância global no futuro.
A “Guinada para o Leste” e seus limites
Guinada para o Leste, de Povorot K. Vostoku, foi um folheto publicado há quase cem anos por um imigrante russo, e lançou o que é chamado de “eurasianismo”. Seus proponentes acreditavam que a Rússia não é uma civilização eslava (o ponto dos eslavófilos) e nem pertence ao Ocidente, como acreditavam os ocidentalistas. Na visão eurasianista, a Rússia é uma civilização única baseada principalmente na “simbiose” de eslavos ortodoxos e turcos muçulmanos. O eurasianismo era, de certa forma, um reflexo da ideologia soviética, que enfatizava o surgimento do “povo soviético” multiétnico, uma quase-nação peculiar.
Praticamente desconhecido durante a era soviética, o eurasianismo se tornou popular no final da era soviética e no início do regime que se seguiu. Pode-se supor que o “eurasianismo” fosse orientado para a Ásia. Ainda assim, os eurasianistas, com sua aversão ao Ocidente e apreço pelo povo túrquico da Rússia/URSS, não se interessaram muito pela China, que era geralmente ignorada ou vista como força hostil. Na verdade, a virada da Rússia para o Leste sempre foi limitada.
Os limites do apelo da China
Além disso, durante a maior parte da história soviética pós-Segunda Guerra Mundial, a China e a URSS foram inimigos mortais, especialmente após a visita do presidente dos EUA, Richard Nixon, a Pequim. No final da era soviética, a relação entre Pequim e Moscou foi restaurada e o comércio retomado, e foi especialmente ativo no Extremo Oriente russo. Ainda assim, a reaproximação de Moscou com Pequim foi lenta e relutante. Havia várias razões para isso.
Para começar, a emergente elite pós-soviética, tanto os magnatas imensamente ricos quanto a classe média, temiam o modelo totalitário chinês, em que a própria natureza da propriedade privada não existe e o Estado continua sendo o proprietário final, o que impede uma “simbiose” entre magnatas e burocracia. Esse era o modelo de operação na Rússia pós-soviética, especialmente após a ascensão de Vladimir Putin. Muitos magnatas e membros prósperos da classe média não tinham certeza sobre a segurança de suas riquezas. Apesar disso, investiram seus fundos no Ocidente, onde assumiram que tanto o seu dinheiro quanto as suas propriedades estariam seguros.
De fato, muitos deles eram estudantes durante o período soviético, e seus professores lhes diziam que a propriedade privada era “sagrada” no Ocidente, como Karl Marx dissera certa vez. Recentemente, eles devem ter entendido o quão errado estava Marx. Tanto para a elite quanto para as massas, a China não poderia proporcionar uma vida confortável, semelhante ao estilo de vida do Ocidente. Eles queriam morar na Europa, se não nos Estados Unidos, cuja imagem começou a decolar há algum tempo.
Havia também estereótipos raciais, culturais e históricos. Na mente de muitos russos, os chineses eram parentes dos bárbaros asiáticos, como os mongóis, cuja conquista devastadora no século 13 levou ao que a historiografia russa chamou de “jugo tártaro-mongol”. Isso durou 250 anos e levou, de acordo com a maioria dos historiadores russos, à degradação do país e à queda do Ocidente avançado, que atraía a elite russa desde o século XVIII.
Essa imagem da China foi difundida entre os dissidentes soviéticos do final da era Brejnev, como testemunham os escritos de Andrei Amalrik. Os liberais russos ocidentalizados, que emergiram como principal força intelectual e cultural após o colapso da União Soviética, geralmente endossavam a imagem da China do discurso ocidental, principalmente americano, que invariavelmente afirmava que o sistema totalitário chinês era absolutamente disfuncional e que o país não tinha futuro.
Alguns escritores russos apresentaram uma visão alternativa da história, com a China desempenhando um papel de liderança no destino da Rússia. Foi o caso de Vyacheslav Rybakov, usando o pseudônimo Van Zaichik. Em seus romances, a Rússia se tornou parte do império chinês, que foi transformado em “Ordússia” (uma mistura dos nomes Horda e Rússia). Ainda assim, esse romance era uma literatura kitsch peculiar, ou paródia, e não um programa político. Ainda assim, apesar do desejo da elite russa e das massas, em sua maioria, de se distanciar da China, a Rússia começou a sentir cada vez mais a gravitação econômica de Pequim, principalmente porque vinha experimentando crescentes problemas para lidar com o Ocidente.
O impulso econômico da China e suas consequências
No início da era pós-soviética, a Rússia ainda acreditava que Pequim precisaria muito de Moscou. De fato, a Rússia começou a vender armas para a China na década de 1990. Ainda assim, com o passar do tempo, a China parecia estar cada vez menos dependente das armas russas. O comércio com o Extremo Oriente se intensificou, aumentou a dependência da região em relação à China e criou um potencial para a secessão da região da Federação Russa.
No entanto, Moscou não investiu muito na região, apesar de muitas negociações. A crescente incapacidade de se libertar da atração gravitacional de Pequim pode ser vista nos acordos de gás. Moscou negocia gás com Pequim há algum tempo, no entanto, os chineses não estavam dispostos a pagar o mesmo preço que os clientes europeus, e as negociações não avançavam.
O conflito da Rússia com a Ucrânia e a anexação da Crimeia mudaram tudo isso. Percebendo problemas com o Ocidente, Putin concordou imediatamente com as condições da China em 2014. O “The Power of Siberia”, um gigantesco gasoduto, foi um empreendimento enorme e caro, e alguns presumiram que a Gazprom, a maior empresa de gás da Rússia, não teria lucro com ele. A linha de gás era uma vitória clara para a China: ela não apenas obtinha uma fonte de gás barata e estável, mas também tornava a seu fornecimento seguro em caso de conflito com os Estados Unidos.
A dependência econômica russa da China tornou-se mais aparente com o passar do tempo. Enquanto o lançamento do Nord Stream 2 se tornava cada vez mais improvável e Putin planejava a invasão da Ucrânia, o mercado chinês se tornou ainda mais importante para Moscou.
Antes da guerra na Ucrânia, Putin visitou a China e garantiu um acordo para outro gasoduto. Ele certamente supôs que o empreendimento ucraniano seria uma blitzkrieg rápida e fácil, à moda das guerras de 2008 e 2014, e acreditou que o Ocidente continuaria interessado no gás russo. No entanto, tudo deu errado. A guerra tornou-se um conflito prolongado e sangrento, levando à expulsão virtual da Rússia da economia do Ocidente. A China emergiu não apenas como o principal, mas possivelmente o único mercado – não apenas para o gás, mas também para todo o resto.
Além disso, a China pode ser o único país a cujo sistema financeiro a rede de Moscou pode se conectar. De fato, com a Visa e outras instituições financeiras encerrando suas atividades na Rússia, as empresas chinesas propuseram substitutos. A aceitação e disseminação dos cartões de crédito chineses podem trazer não apenas implicações econômicas – a crescente integração da Rússia à comunidade econômica chinesa –, mas também um impacto cultural.
O nascimento da “Ordússia” e o século asiático
Viajar para países europeus se tornará cada vez mais complexo, não apenas por problemas de visto de entrada, mas também porque os cartões de crédito chineses não são aceitos em parte do Ocidente. Ao mesmo tempo, os russos podem facilmente visitar a China e outros países que dependem cada vez mais do engajamento econômico com Pequim, como o Irã.
Estudantes russos poderão descobrir que, embora sejam rejeitados pelas universidades ocidentais, seriam bem recebidos pelos chineses. E se esse processo de exposição à China e ao Oriente em geral continuar por muito tempo, uma mudança fundamental poderá acontecer na cultura russa: não apenas o legado de Pedro, o Grande, o imperador ocidentalizante, mas também o “eurasianismo” ou sovietismo, com seu ainda latente russocentrismo, seria apagado ou pelo menos dramaticamente deformado, e uma “Ordússia” sinocêntrica nasceria, agora não como uma peculiar peça literária pós-moderna, mas como uma realidade política.
A emergência da Rússia como o maior “irmão mais novo” do Império do Meio pode, a longo prazo, revelar o paradoxo do Weltgeist (“espírito do mundo”). Enquanto saudava o colapso da URSS e marginalizava a Rússia pós-soviética, o Ocidente, especialmente a elite dos Estados Unidos, acreditou que isso garantiria seu domínio global permanente. Algo diferente está acontecendo: ao remover o império “eurasiano”, ou russo, de sua posição como ator mundial, o Ocidente eliminou o contrapeso continental à China e garantiu a predominância global do Império do Meio em um futuro não tão distante.
Artigo publicado na Agência Anadolu.
*Dmitry V. Shlapentokh é Professor Associado de História na Universidade Indiana South Bend.
Muito bom artigo e concordo com ele, excetuando a condução da guerra da Rússia na Ucrânia, porque é muito cedo para avaliar a condução do conflito. Realmente, esse conflito encerra quase 400 anos de influência ocidental trazida por Pedro o grande. Porém o autor parece desconhecer a doutrina Primakov (do diplomata Eugeni Primakov) que diz que a Rússia deve manter fortes relações com China e Índia, expulsar os EUA do oriente médio e manter a OTAN longe da Rússia. Ainda é muito cedo, para podermos dizer o que a guerra Rússia Ucraniana significa e seus efeitos, para a Rússia e para o resto do mundo.