A privatização da Eletrobrás tem sido interpretada pelos críticos como o repasse de recursos nacionais a terceiros por um preço barato.
O debate sobre a privatização da Eletrobrás segue intenso na mídia brasileira e mesmo no noticiário econômico mundial. A venda das ações da Eletrobrás de propriedade do governo brasileiro, discutida na forma de privatização, tem sido interpretada pelos críticos de duas formas: a dominação de terceiros sobre recursos nacionais e a venda barata de uma riqueza nacional.
Eletrobrás: um gigante envolvido em pequenos problemas
A Eletrobrás, praticamente sinônimo de geração, transmissão e distribuição de eletricidade no Brasil, é a maior empresa de energia elétrica da América Latina. A empresa detém mais de 30% da capacidade de geração do Brasil e cerca de metade do sistema de transmissão. O governo federal, junto com o estatal Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), detém quase 70% das ações da empresa. O restante é dividido entre fundos de investimentos nacionais e estrangeiros, sendo o principal o 3G Radar, controlado por três dos maiores bilionários do Brasil, e que controla marcas internacionais como a Budweiser, o Burger King e a Heinz Ketchup. As ações da Eletrobrás são negociadas nas bolsas de valores de São Paulo, Madri e Nova York.
O Brasil é o segundo maior produtor de energia hidrelétrica do mundo e anteriormente 80% de sua eletricidade era proveniente dessa fonte. Mudanças na matriz energética do país, que vem incluindo outras fontes renováveis como, eólica e biomassa, reduziram essa participação para cerca de 65%.
O país atende aos interesses do planeta de duas maneiras, tanto no uso de energia renovável, que responde por mais de 80% de sua produção de eletricidade (e por isso utiliza menos combustíveis fósseis e polui menos o ar), como por possuir cerca de 60% da floresta amazônica, chamada por alguns de “pulmão do mundo”, desempenhando um papel importante no clima mundial.
No entanto, o Brasil enfrenta escassez de água e, de acordo com alguns, escassez de energia devido a uma estiagem sem precedentes nos últimos 90 anos. É claro que muitos analistas acreditam que vincular o problema de fornecimento de energia à seca é apenas uma desculpa, a maneira pela qual alguns procuram escapar da responsabilidade por suas gestões. Os analistas acreditam que a questão da privatização da Eletrobrás, levantada pela primeira vez em 2016, durante a presidência de Michel Temer, não foi totalmente implementada devido à oposição e a outros problemas. Agora, o tema volta novamente à tona com o presidente Jair Bolsonaro.
Os defensores da privatização acreditam que o governo e a empresa não têm orçamento para investir em projetos de desenvolvimento, e os opositores, citando estatísticas, afirmam que o desempenho dos últimos cinco anos mostrou que, quanto mais forte economicamente está a empresa, menor é o investimento. Eles alegam que os lucros são distribuídos entre os acionistas na forma de dividendos, ao invés de aplicado em investimentos.
Além de mostrar que nem todos os problemas atuais são causados pela seca, os opositores apontam duas questões importantes: falta de gestão adequada dos recursos hídricos ao longo dos anos e a real intenção de proponentes que insistem no desenvolvimento de usinas termelétricas. Não está claro o que está por trás da privatização: se os proponentes realmente buscam benefícios para seus grandes apoiadores, ou se pretendem abrir as portas para que potências estrangeiras tomem posse e administrem essa enorme riqueza nacional.
Seja como for, não se pode esquecer que o déficit de energia elétrica causou um apagão público em 2001, mas depois do governo Lula, a produção de energia elétrica no Brasil dobrou e o setor elétrico viveu um bom período com aumento de investimentos. Mesmo agora, parece que o governo deveria considerar a opção de apoiar o setor elétrico como possível solução e deixar que especialistas discutam e julguem de forma independente.
Se uma empresa do porte da Eletrobrás, inigualável em seu ramo de atuação, com alto faturamento, boa rentabilidade, e crescente demanda de mercado por seus produtos, não consegue investir em projetos de desenvolvimento, provavelmente está enfrentando problemas que especialistas deveriam estudar.
Os defensores da privatização também estão obviamente enganados quando afirmam que a única forma de resgate da empresa é a venda das ações governamentais da Eletrobrás.
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Privatização, a receita salvadora da economia?
A questão da privatização tem sido um dos principais métodos de gestão da economia de países por muito tempo. O início da privatização remonta a 1979, quando Margaret Thatcher, sob o slogan “O governo não é um bom empresário”, privatizou empresas e instituições na Grã-Bretanha.
A versão de Thatcher foi posteriormente implementada na França por Jacques Chirac, e a visão predominante da economia atual é que a única forma de desenvolver e competir é através da privatização. Como Milton Friedman disse uma vez, se deixarmos a administração de um deserto para o governo, em poucos anos haverá escassez de areia. Países como a Polônia, após o colapso econômico do comunismo, privatizaram suas economias de forma cirúrgica e urgente e as salvaram do colapso.
Essa é a única ideia sobre novas economias compartilhada entre os economistas, e circula na forma de livros, notas e artigos nas redes sociais e na imprensa. Mas o modelo econômico de economia privada é o único de sucesso? A resposta é um sonoro “não”, pois gigantes como a Rússia e a China comunista recorreram a métodos menos arriscados para impulsionar suas economias.
O risco da privatização era tão assustador para China e Rússia que eles optaram por melhorar a economia considerando a cultura e as condições de sua sociedade: uma economia estatal competitiva. Foi esse caminho que esses países escolheram, mas “competitividade” não é apenas uma palavra, tendo sido feitas mudanças fundamentais na estrutura das indústrias para tornar esse slogan uma realidade.
Ambos os países são proprietários de dinâmicas empresas estatais da indústria de petróleo e gás, que, aliás, tem tido tanto sucesso que, ao lado das maiores empresas europeias e americanas, estão na vanguarda da produção. São elas:
- A estatal chinesa Sinopec é conhecida como maior empresa petrolífera do mundo. Tem desempenhado um importante papel em produtos upstream e downstream na indústria de petróleo da China por muitos anos. Com sede em Pequim, a empresa não produz mais petróleo do que as demais da lista, mas é uma exceção na produção de produtos petroquímicos[1];
- A Gazprom, que iniciou atividades em 1989, é a maior produtora de gás natural do mundo. É uma empresa pública, sendo que a maior parte de suas ações permanece nas mãos do governo russo e o restante é de propriedade privada. A empresa desenvolveu-se na década de 1990 e deve este grande passo ao fato de ter sido gerida pelo primeiro-ministro da Rússia. A empresa tem muita influência política e econômica na região, com receita anual de US$ 150 bilhões e lucro líquido de US$ 40 bilhões[1];
- A Rosneft é uma empresa de petróleo e gás. O governo russo detém 69,5% das ações e a britânica BP possui 19,75%. É a maior companhia petrolífera de capital aberto do mundo. Estatísticas divulgadas recentemente mostram que a produção da empresa equivale a 5,07 milhões de barris de óleo por dia, dos quais 81% é petróleo. A Rosneft produz 40% do petróleo da Rússia, mais do que qualquer outro país, exceto os EUA e a Arábia Saudita. O valor do investimento da empresa é de 72,5 bilhões de dólares[1].
Portanto, empresas não privatizadas também podem ser bem-sucedidas.
Privatização e suas consequências
A eletricidade é uma necessidade essencial e crescente. Há quem diga que o consumo de eletricidade per capita é um critério de bem-estar da população de qualquer país, e se concordarmos com isso, o Brasil, que se espera que venha a ser uma potência econômica no futuro, e hoje possuindo a sexta maior população do mundo, tem um consumo de energia per capita muito baixo, quase classificado na 100ª posição. Isso significa que seu padrão de consumo de eletricidade é baixo.
Fornecer eletricidade para pessoas que consomem tão pouco não deveria ser tão difícil a ponto de o governo ter que colocar à venda ações de uma grande empresa estatal. Além disso, como o próximo proprietário da Eletrobrás se preocupará com o próprio lucro e não terá concorrentes, é concebível que o preço da energia elétrica aumente. O governo não terá muita influência legal para controlar essa circunstância e criar justiça, e isso será problemático não apenas para a vida e o bem-estar das pessoas, mas também para a indústria e a economia brasileiras.
Além disso, a gestão de quase metade da rede elétrica do país, ponto muito importante do ponto de vista da defesa passiva[2], será entregue à administração e, de facto, a acionistas que poderão ser estrangeiros e não ter nenhuma sensibilidade no que concerne à segurança do Brasil.
Se há mais de cinco anos os trabalhadores e sindicatos da Eletrobrás, assim como movimentos populares e partidos de oposição, lutam contra o projeto de privatização da Eletrobrás, provavelmente é por essas razões. Com base nisso, esse plano não parece ser desejável para a maioria da população. Embora o governo brasileiro não seja legalmente obrigado a realizar um referendo sobre essa decisão, se os políticos querem construir um bom nome na História, podem pedir a opinião de especialistas e obter o feedback da população, para só então tomar uma decisão.
Esse plano não terá efeitos duradouros enquanto estiver apenas no papel e até que seja implementado, mas após sua implementação, suas consequências serão perenes e, se for tomada a decisão errada, poderá ser muito difícil de compensar.
Irã, uma experiência similar
Embora a questão da descoberta e extração de petróleo não seja semelhante à eletricidade, em termos da presença de países estrangeiros há algumas similitudes entre a questão da nacionalização da indústria petrolífera iraniana e a questão da Eletrobrás. Desde os primeiros anos de perfuração de poços de petróleo no Irã, olhares de cobiça estrangeiros buscaram obter esse recurso do subsolo iraniano, e em todas as oportunidades tiraram proveito da exploração e extração de petróleo.
Após a descoberta de reservas no país, Muzaffar al-Din Shah, então rei do Irã, assinou, em 1901, um tratado com o britânico William Knox D’Arcy[3], que ficou conhecido como “Tratado D’Arcy”. Sob esse acordo, William D’Arcy adquiriu o privilégio exclusivo de explorar e extrair petróleo no sul do Irã.
Gradualmente, com a melhora da conscientização popular e consequente aumento dos protestos sobre o status dos contratos de petróleo entre o governo iraniano e compradores estrangeiros, o Dr. Mohammed Mossadegh[4], representante do povo de Teerã no 16º Parlamento iraniano, propôs a nacionalização da indústria petrolífera no início dos anos 1950, e sua proposta rapidamente recebeu apoio da população. Assim, a nacionalização da indústria petrolífera iraniana foi aprovada pelo parlamento do país há setenta e um anos.
Incapaz de renunciar à lucrativa exploração de petróleo, a Grã-Bretanha primeiro reclamou ao Conselho de Segurança da ONU. O primeiro-ministro iraniano provou que não era uma disputa entre dois países, mas uma entre um país e uma empresa internacional, e o Conselho de Segurança admitiu que não tinha jurisdição sobre o assunto (em 1909 a companhia de D’Arcy, Anglo Persian Oil Co., APOC, foi comprada pelo governo britânico para garantir suprimento de combustível para a Marinha Real. A APOC se tornou a Anglo Iranian Oil Co. Ltd., e mais tarde, British Petroleum, hoje apenas BP).
Em seguida, o Reino Unido apresentou uma queixa ao Tribunal de Haia, sob o pretexto de que o Irã não cumpriu suas obrigações apesar da assinatura dos tratados, e alegou que a nacionalização da indústria petrolífera iraniana era ilegal. Após inúmeras deliberações e longas audiências no tribunal, Mossadegh, como representante iraniano, alegou que o Tribunal Internacional de Justiça em Haia não era competente para julgar o assunto.
Após muitas idas e vindas, nove dos 14 juízes decidiram que a Corte Internacional de Justiça não tinha jurisdição sobre o caso. O resumo da decisão foi que o Tribunal não tinha jurisdição para ouvir a queixa do governo britânico. O tribunal ordenou, em 5 de julho de 1951, que: “Agora que a sentença do tribunal foi emitida, é óbvio que o acordo temporário é inválido”.
A experiência do Irã na questão do petróleo mostra de forma clara que os valiosos recursos de um país não podem ser entregues a estrangeiros, e se esse erro for cometido, mesmo que de forma legal, em algum momento será anulado através da conscientização do povo, ainda que com sofrimento e dificuldade.
Notas
[1] Dados: Wikipedia.
[2] Sistemas de energia elétrica são infraestruturas críticas e desempenham um papel fundamental no desenvolvimento sustentável das sociedades modernas. Assim, preocupações com ataques terroristas ou maliciosos a redes de energia elétrica levam à necessidade de implementação de uma defesa passiva para reduzir a probabilidade de ataques e minimizar danos e consequências. Para alocar de forma otimizada os recursos de defesa passiva, é necessária familiaridade com aspectos de segurança do sistema de energia, vulnerabilidades, interação com outras infraestruturas, gerenciamento de crises, tecnologias benéficas e adversas e metodologias de otimização de proteção (fonte: ADELPOUR Mohammad; GHASEMI, Hassan. “Essentials of Passive Defense in Electric Power Systems”, School of Electrical and Computer Engineering University of Tehran).
[3] William Knox D’Arcy (1849-1917), empresário britânico, foi um dos primeiros a explorar a indústria de petróleo e petroquímica na Pérsia.
[4] Mohammed Mossadegh (1880-1967) foi político iraniano, membro do parlamento e primeiro-ministro do Irã entre 1951 e 1953.
Muito boa a reflexão, isso sem considerar que a privatização da Eletrobrás representa uma transferência dos ativos das mãos do Estado para às empresas privadas com a descotização de usinas já pagas pela sociedade brasileira, o que impactará sobremaneira as tarifas de energia elétrica para consumidor, dificultando ainda mais os alcances de metas de percapta de consumidor de energia.
Depois da Petrobras, é a vez da Eletrobras. Um imperialismo que não tem piedade de pessoas carentes
A Petrobrás acho mais necessária de ser privatizada, uma vez que o preço do petróleo é regido pelo mercado internacional, e a estatal é um antro de corrupção, que serve mais aos partidos políticos que aos brasileiros. Já a Eletrobrás ela é fundamental para nosso desenvolvimento regional e nacional, uma vez que o consumo de energia só vai aumentar, e não é seguro deixar uma empresa dessa nas mãos de capitalistas gananciosos, principalmente se forem estrangeiros. A empresas de energia estaduais que foram privatizadas criaram ainda mais problemas econômicos e sociais no Brasil.