O fim das guerras na Chechênia não eliminou a oposição a Moscou, e a presença de chechenos entre as tropas na fronteira ucraniana pode representar um problema a longo prazo.
A Rússia, que há anos realiza manobras conjuntas com a Bielorrússia, enviou um grande volume de tropas para a fronteira ucraniana. Países ocidentais descrevem a disposição militar russa como um indicativo de guerra, e inclusive tentaram transmitir ao vivo da praça principal de Kiev para cobrir a invasão. O ataque cibernético generalizado ao ministério da Defesa e outros sites do governo da Ucrânia fez com que notícias contraditórias chegassem de Kiev nos últimos dias.
Enquanto isso, líderes europeus tentam evitar a eclosão de uma guerra por meio de visitas e telefonemas, para mostrar que estão desempenhando um papel na prevenção do conflito. Caso ocorra uma guerra, será a maior da Europa nos últimos 70 anos e afetará o mundo. No entanto, um pequeno detalhe ficou perdido em meio ao enorme tráfego de notícias importantes, e não foi considerado. Um detalhe que pode ser muito importante.
Rússia: Insistência e negação
A Rússia insiste na manutenção de suas tropas ao lado das fronteiras e, ao mesmo tempo, segue com uma política de negação em meio à crise. A negação, honesta ou enganosa, não terá efeito no resultado, e nos próximos dias o futuro esclarecerá se um país do século 21 está determinado a invadir e ocupar seu vizinho.
A Rússia, que se recorda da ocupação soviética do Afeganistão e da humilhante derrota sofreu ali, sabe que invadir um país não significa controlá-lo. Na verdade, os partidários pró-Rússia na Ucrânia não são tão numerosos a ponto de encenar uma demonstração tal que justifique uma ocupação militar.
Qual poderia ser o principal objetivo da Rússia neste até agora custoso show, e em uma próxima custosa guerra, se ela acontecer?
Para encontrar uma resposta razoável, é preciso rever o papel do Ocidente, que praticamente ignorou as fronteiras e a segurança da Rússia, dando luz verde à Ucrânia para ingressar na OTAN. Os mesmos países que, ao invés de um apoio real à Kiev, agora recorrem a ameaças de sanções não militares, mas principalmente econômicas, e apoiam o país enviando armas que julgam ser suficientes. Ao mesmo tempo, esses mesmos países retiram seus diplomatas de Kiev mais cedo do que muitos outros, para que a vida de seus compatriotas não corra perigo.
A Rússia já havia anexado a Península da Crimeia em apoio à oposição separatista do país. A Crimeia foi uma das repúblicas autônomas da União Soviética, esteve sob domínio ucraniano nos anos seguintes à queda e voltou a fazer parte da Rússia através de um referendo em 17 de março de 2014. Os governos ocidentais ainda se referem a isso como uma “ocupação militar russa da Crimeia”.
A Crimeia e sua capital, Sebastopol, são consideradas as 84ª e 85ª repúblicas autônomas da Federação Russa, embora a comunidade internacional ainda não tenha reconhecido a anexação.
À sombra da ameaça de guerra e suas notícias, a Duma, o parlamento russo, aprovou há poucos dias, por maioria de votos, o projeto de uma resolução pedido pelo presidente Vladimir Putin no sentido de reconhecer a independência das autoproclamadas Repúblicas de Donetsk e Luhansk. Embora essa aprovação possa marcar a retirada da Rússia do tratado de Minsk, três objetivos insistentemente perseguidos por Moscou, através da demonstração de força e mesmo com ameaça de guerra, evidenciam que a Rússia não recuará simplesmente de sua posição:
- Evitar o desdobramento de tropas da OTAN perto de suas fronteiras;
- Mostrar que as promessas ocidentais de apoio não estão disponíveis;
- Provar sua hegemonia frente ao Ocidente.
Essas pressões, mesmo que não levem à guerra, enviam uma mensagem clara aos demais vizinhos da Rússia, que estão a caminho de uma “ocidentalização” e esperam o apoio do Ocidente contra Moscou.
Além disso, a Rússia pode estar preocupada com o estabelecimento da democracia nos países da região, porque isso poderia ser contagioso e gradualmente representar um sério desafio aos países vizinhos cujos governos são apoiados por Moscou e estão preocupados com os resultados dos próximos referendos.
Um acordo que pode levar a novos problemas
Independentemente das análises mais comuns sobre as razões para as ações recentes da Rússia, há também uma outra avaliação, digna de nota, que escapou à maior parte dos analistas. Nos últimos dias, vários meios de comunicação citaram Ramzan Kadyrov, dizendo que os muçulmanos russos também apoiam as ações de Putin. Ramzan Ahmadovich Kadyrov, insurgente checheno, é presidente da República Autônoma da Chechênia desde 2007. Ele é filho do ex-presidente checheno Ahmad Kadyrov, morto em uma explosão de bomba.
Ramzan Kadyrov, que agora está ao lado de Putin, é uma das mais proeminentes figuras a apoiar abertamente o assassinato de Boris Nemtsov[1]. Pode surgir a questão de porque o apoio de Kadyrov à decisão de Putin sobre a crise na Ucrânia é importante. Esta é uma pergunta-chave. Primeiro devemos conhecer um pouco melhor a Chechênia e os chechenos.
Relações checheno-russas ao longo da história
O islamismo, a segunda religião mais popular da Rússia, com uma população de cerca de 20 milhões de muçulmanos, está espalhado pelas nove repúblicas da Federação Russa. Quase todos os muçulmanos na Rússia são sunitas; apenas dois por cento são xiitas (essas são as duas principais correntes do Islã).
Embora a primeira região muçulmana da Rússia tenha sido a atual República do Daguestão, que se uniu ao Islã há cinco séculos pela presença dos árabes, os chechenos sempre foram muçulmanos influentes na história da Rússia.
Os chechenos são um povo que trabalha duro, cuja luta faz parte de sua identidade. Após aderir ao Islã (a partir do século XVIII), e principalmente após o surgimento de um governo russo ao norte, na região do Cáucaso (importante região entre o Mar Negro e o Mar Cáspio), os chechenos foram um objetivo competitivo entre três potências: Rússia, Irã e Império Otomano. De tempos em tempos, essas potências dominaram todo ou parte do Cáucaso. Principalmente o Irã e os Otomanos, e depois os russos (especialmente depois das guerras Irã-Rússia, que levaram aos tratados unilaterais de Golestan e Turkmenchay em favor da Rússia), assumiram o controle da região até o final do século XVIII.
Desde então, os chechenos se opuseram ao governo central de várias maneiras e razões e ainda lutam por sua independência. Sheikh Shamel foi um dos primeiros líderes desse separatismo no século 18, durante o reinado de Fath-Ali Shah Qajar do Irã. Ele tentou libertar os territórios ocupados após os dois tratados mencionados.
O primeiro nome de Sheikh Shamel era Ali, e ele nasceu em Maragheh, no Irã; ele se considerava tártaro e fundou o Movimento Islâmico do Daguestão. Sheikh Shamel Dagestani foi o fundador da luta no Cáucaso contra a Rússia czarista, em especial entre o povo checheno, amante da liberdade.
A Chechênia e a Rússia contemporânea
À medida que os chechenos foram derrotados, seu ódio à Rússia passou para as próximas gerações. Como resultado, a palavra “liberdade” sobreviveu como uma esperança até mesmo na literatura chechena, de modo que a se tornou uma das palavras mais usadas na cultura de resistência na Chechênia.
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Os chechenos, cujo símbolo favorito é o lobo (animal que, na crença desse povo, nunca fica aquém de seus inimigos, mesmo que sejam mais fortes), usam a palavra “liberdade” em suas conversas ao longo do dia muitas vezes. “Sua presença neste lugar promete total liberdade”, dizem aos convidados em saudações e cumprimentos. Em vez de dizer adeus, eles dizem: “Desejo-lhe um caminho livre”, e ao invés de “envie meus cumprimentos para …”, eles dizem, “dedique-lhe a liberdade”, e no lugar de dizer: “Fique saudável”, usam a frase: “Que Deus lhe dê liberdade.”
É certo que o uso da palavra “liberdade” nessas expressões amplamente utilizadas, que qualquer checheno usa muitas vezes durante o dia, indica a importância desse conceito no pensamento checheno. O famoso poeta russo Mikhail Yurovich Lermontov descreve as características básicas dos chechenos em seu poema:
E nesses vales selvagens existem tribos que
Seu deus é a liberdade
e
sua lei é a guerra.
O fato é que os chechenos são um povo corajoso e militante que sempre lutou contra o governo central com diferentes objetivos ao longo de sua história. Foi por isso que Stalin os deportou à força para a Sibéria de 1944 a 1956, quando muitos chechenos perderam a vida no exílio. Essas lembranças amargas mais tarde se transformaram em ressentimentos transmitidos de geração em geração.
Após o colapso da União Soviética, os chechenos reivindicaram sua independência e a Rússia entrou em guerra contra eles duas vezes. A primeira, na qual dezenas de milhares de chechenos foram mortos, ocorreu entre 1994 e 1996, e a segunda começou em 1999.
Grozny, capital da Chechênia, foi capturada pela Rússia na segunda guerra chechena, quando grande da cidade foi destruída. O pensamento político na Chechênia ficou dividido após a guerra. Uma parte acreditava na luta armada (chamaremos de Grupo I) e outra em uma solução pacífica (chamaremos a estes de Grupo II). O Grupo I acreditava que o Grupo II estava comprometido, traindo as aspirações do povo checheno. O Grupo II, supostamente apoiado pela Rússia, foi recompensado ao alcançar o estabelecimento da República Chechena.
O atual governo de Ramzan Kadyrov pode ser considerado herdeiro do Grupo II; no entanto, a maioria do povo checheno ainda acredita profundamente que seu destino é lutar até a morte e frustrar a tentativa da Rússia de dominar esta nação agitada. Eles dizem que não desistirão da luta até que recuperem sua liberdade usurpada, e esperam estabelecer um Emirado Islâmico[2] a longo prazo.
O sonho de estabelecer um Emirado (Estado) Islâmico fora da Chechênia
Um fato estranho ocorreu na história contemporânea, cujos detalhes permanecem obscuros; muitos militantes chechenos do Cáucaso seguiram em direção à Síria e o Iraque perseguindo a ideia de estabelecer o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), ao invés de um Emirado Islâmico em sua terra natal. Os chechenos foram maioria esmagadora entre os cidadãos dos cerca de 90 países que fizeram parte do ISIS e outros grupos armados semelhantes, ou cerca de 14.000 pessoas de acordo com o Washington Post.
O número de chechenos entre os combatentes do ISIS e outros grupos armados na Síria, no Iraque e no Afeganistão, foi mencionado muitas vezes por analistas, mas nunca foi fornecida uma evidência forte para essas estimativas. Não obstante o súbito surgimento do ISIS na Síria e no Iraque, e a fácil captura de grandes cidades em ambos os países ainda sejam uma ambiguidade, isso abriu caminho para a presença de combatentes chechenos e prometeu a eles o estabelecimento de um Emirado Islâmico.
Nos bastidores do sucesso das fáceis conquistas iniciais, os chechenos formaram o corpo principal do movimento ISIS e, embora não tivessem a liderança, que pertencia aos árabes, a maior parte das vítimas eram chechenas, mesmo as baixas que ocorreram na forma de execuções de membros que passaram a protestar sobre os motivos e a filosofia dos combates.
Com o ISIS significativamente esmagado pela coalizão global, as circunstâncias mudaram completamente. A possibilidade de que remanescentes das forças do ISIS, como os chechenos, retornem à sua terra natal, tornou-se um pesadelo para os governos de seus países de origem.
Isto posto, não é improvável que o governo da Rússia tenha pensado em uma nova solução para esse problema.
A Chechênia é muito importante para a Rússia, e Moscou não pode simplesmente fechar os olhos para a região. A eventual desintegração da Chechênia inevitavelmente reduziria significativamente a capacidade da Rússia de exportar petróleo e gás para os mercados europeus, na medida em que os oleodutos e gasodutos russos e cazaques passam pela Chechênia.
Dada essa importância, a Rússia procura de todas as formas manter o controle dessa via. Por outro lado, uma independência da Chechênia poderia levar a uma série de reações em outras regiões muçulmanas da Rússia, especialmente o Tartaristão, o que inevitavelmente enfraqueceria Moscou e beneficiaria seus rivais. Portanto, é compreensível que a Rússia busque políticas como:
- Manter a Chechênia sob sua influência, controlando e até reduzindo o número de combatentes militantes chechenos (o Grupo I); e
- Apoiar os que acreditam na interação política com a Rússia (o Grupo II).
No entanto, a Rússia sabe que a presença de chechenos na península da Crimeia e nas fronteiras com a Ucrânia, e possivelmente em uma guerra contra a Ucrânia, pode ser apropriada para o fornecimento de infantaria, e até ser erroneamente considerada como apoio dos muçulmanos do Cáucaso à estratégia da Rússia, mas, por outro lado, pode causar um problema de longo prazo para a região e para a própria Rússia.
Notas
[1] Boris Yefimovich Nemtsov, político russo, foi primeiro-ministro adjunto da Rússia e um dos líderes do movimento Solidarnost. Depois da primeira eleição do presidente Vladimir Putin, Nemtsov se tornou um de seus críticos mais ferrenhos.
[2] Emirado Islâmico é um termo usado pelos muçulmanos fundamentalistas para os países governados pelo Islã, e é sinônimo de um estado totalmente islâmico.
Ótimo artigo, Albert. Tudo é mais complexo do que pensamos. Quando se pensa na Russia, se lembrados ortodoxo, mas tem uma grande parte muçulmana. Interessante.
Saudações ao Sr. Hamid
O artigo é muito bom e revela fatos sobre o ISIL.