Por Hamid Hajizadeh* e Elizabeth Hautz*
A recente crise na fronteira russo-ucraniana, além de militarmente significativa, também é importante em termos de seu impacto nos fluxos energéticos mundiais.
A questão da energia tem relação de mão dupla com a crise: de um lado, o preço do gás aumentará se a guerra eclodir e, de outro, a ameaça de sanções teriam efeito preventivo sobre a probabilidade de guerra, reduzindo a possibilidade de sua ocorrência. Neste artigo, analisamos essas relações.
Combustíveis fósseis e sua participação na energia mundial
Oitenta e cinco por cento das fontes de energia primária do mundo ainda são combustíveis fósseis, que contêm petróleo (33%), carvão (26%) e gás natural (26%). Combustíveis não fósseis, como energia nuclear, hidrelétrica e de outras fontes de energia renovável, como geotérmica, solar, maremotriz[1], eólica, madeira e resíduos, representam, juntos, apenas cerca de 15%. Isso mostra que o mundo não pode ficar sem combustíveis fósseis ainda por muitos anos e a vida humana depende deles. O consumo de gás está crescendo devido à sua menor poluição entre os combustíveis fósseis[2].
Países detentores de gás
Rússia, Irã e Catar são os três maiores detentores de gás do mundo, respondendo por quase 60% das reservas de gás mundial. A Rússia já esteve classificada em primeiro lugar, mas devido à recente descoberta de gás no sul do Mar Cáspio, o Irã parece tê-la substituído.
Os Estados Unidos, por outro lado, possuem apenas 6,7% das reservas. Irã e Rússia têm, respectivamente, 1,1 e 1,3 trilhões de pés cúbicos de gás, cerca de três vezes mais do que os EUA, e como os Estados Unidos agora produzem mais gás do que qualquer país do Oriente Médio, suas reservas em breve poderão ser significativamente reduzidas. A economia mundial de energia mostra que o consumo de gás está aumentando, e essa fonte de energia gradualmente se tornou um fator importante na diplomacia mundial.
Linhas de exportação de gás russo
A Rússia tem três gasodutos para exportação de gás para a Europa. A linha Yamal-Europe de 4.200 quilômetros, que tem dois ramais, o primeiro passando pela Bielorrússia e seguindo para a Polônia, e o segundo através da Ucrânia. As exportações de gás da Rússia a partir desta linha geraram bilhões de dólares anualmente para a Ucrânia.
O fluxo de gás nesse gasoduto parou recentemente, e o anúncio dessa parada frustrou os esforços da Europa para manter os preços estáveis. Uma questão que, segundo o Oil Price (https://oilprice.com), voltou a aumentar os preços do gás. Cerca de um sexto do fornecimento de gás russo para a Europa e a Turquia são transmitidos através desta linha.
Dois outros gasodutos paralelos de 1.220 quilômetros foram construídos sob o Mar Báltico, chamados Nord Stream 1 e 2, sendo que o Nord Stream 2 foi concluído recentemente, potencialmente dobrando as exportações de gás russo para a Alemanha.
A Rússia fornece entre 40% e 50% do consumo de gás da Europa, ou seja, cerca de 200 bilhões de metros cúbicos por ano, dos quais cerca de 100 bilhões são através do Nord Stream 1 e da rede ucraniana. O Nord Stream 1 tem capacidade de 55 bilhões de metros cúbicos e, com a construção do Nord Stream 2, essa capacidade dobrou. O lançamento do Nord Stream 2 foi adiado em um ano e meio, principalmente devido à oposição dos Estados Unidos. Com Biden no governo, a política dos EUA quanto ao assunto mudou e a oposição a ele diminuiu.
Abastecimento de gás da Europa pelo Nord Stream 2
Alguns especialistas acreditam que a operação do gasoduto Nord Stream 2 pode não facilitar a situação da Europa num futuro próximo, porque com a sua conclusão, apenas a infraestrutura melhorará, mas não a produção real. Esta é uma afirmação do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (Stiftung Wissenschaft und Politik, SWP). “Esse gasoduto não é necessariamente ‘necessário’ para fornecer gás à Alemanha e à Europa Ocidental”, disse a fundação em uma análise divulgada na primavera.
Alguns especialistas também endossam a opinião do SWP sobre o Nord Stream 2, argumentando que a Rússia está buscando mais do que objetivos econômicos ao construir tal linha no Mar Báltico. Um especialista em energia do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung, DIW), disse à Rádio Alemanha (Deutschlandfunk) que o gasoduto não era necessário para a política energética.
Assim, a União Europeia, a Turquia e outros países europeus não-membros da União Europeia podem facilmente satisfazer suas necessidades através da rede de gasodutos existente. O antigo gasoduto, que passa pela Ucrânia, tem capacidade nominal de 146 bilhões de metros cúbicos por ano. De acordo com as estimativas da DIW, apenas 81 a 88 bilhões de metros cúbicos de gás natural passaram pelo gasoduto a cada ano entre 2017 e 2019. Além disso, há o gasoduto Yamal-Europe através da Polônia e Bielorrússia com capacidade de 33 bilhões de metros cúbicos, e o Nord Stream 1, através do Mar Báltico, com 55 bilhões de metros cúbicos. Mesmo sem os 55 bilhões extras do Nord Stream 2, é improvável que haja um problema significativo no abastecimento de gás europeu.
Contrariamente a essa visão, alguns especialistas acreditam que a exportação de gás russo é vital para a Europa. Os resultados de um estudo recente do Instituto Bruegel, um think tank econômico com sede em Bruxelas, mostram que, no caso do pior cenário, de um desligamento completo do gás russo para a Europa, os recursos disponíveis não são suficientes para substitui-lo totalmente. Seria necessário implementar uma política de restrição da demanda interna em curto prazo até a identificação de novas fontes.
Portanto, é possível que o nível de produção de algumas indústrias tenha que diminuir por algum tempo, e até mesmo a fabricação de itens não essenciais seja interrompida para que o fornecimento de gás para produção da eletricidade necessária para unidades residenciais permaneça regular.
A mudança de posição dos EUA
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, alertou há alguns dias que o gasoduto Nord Stream 2 seria fechado se a Rússia invadisse a Ucrânia e, em seguida, enfatizou sua posição comum com o chanceler alemão Olaf Scholz, aliado dos EUA. Ele disse em entrevista coletiva com Scholz na Casa Branca que a travessia de tropas russas pela fronteira ucraniana marcaria o fim de tal projeto.
“Se a Rússia atacar, seus tanques e forças cruzarão a fronteira ucraniana novamente… não haverá mais Nord Stream 2”, disse ele. Enquanto isso, um repórter perguntou a Joe Biden como os Estados Unidos poderiam interromper o projeto Nord Stream 2 quando o outro lado do projeto era a Alemanha, ao que Biden respondeu: “Prometo que podemos fazer isso”. Os EUA e a Alemanha têm posições semelhantes sobre a Ucrânia, a Rússia e as sanções, disse Olaf Scholz. Ele não mencionou diretamente o projeto Nord Stream 2. Se a Alemanha e os Estados Unidos compartilham a mesma política no projeto Nord Stream 2, de US$ 11 bilhões, pode depender de vários parâmetros.
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Os EUA ameaçaram repetidamente impor sanções pesadas a todas as empresas envolvidas na construção do Nord Stream 2 no passado. A razão para esta oposição era clara. Os Estados Unidos exportam gás natural na forma de GNL para a Europa, mas o gás russo é mais barato. Washington teme que Moscou possa usar o Nord Stream 2 como alavanca para enfraquecer os países da UE, já que a Europa depende cada vez mais do gás russo.
Com a posse de Joe Biden, a posição americana foi ajustada e retirou as sanções contra o projeto para melhorar as relações com a Alemanha. No entanto, a abordagem de Biden foi fortemente contestada por membros do Congresso.
GASPOLÍTICA e Rússia-América-Irã
(Estou usando o termo GASPOLITICS (“GÁSPOLÍTICA”) pela primeira vez no mundo, significando o impacto do gás na política internacional!)
A ameaça dos Estados Unidos de se opor à operação do Nord Stream 2 é mais uma ameaça à estabilidade energética na Europa do que à Rússia, porque mesmo que Moscou tenha que cortar as exportações de gás para a Europa, a Rússia pode encontrar uma alternativa. É a Europa que enfrentará escassez de energia a curto e mesmo a médio prazo. A recente visita de Vladimir Putin à Pequim e a assinatura de um acordo de exportação de gás de longo prazo com a China são vistos como uma medida de precaução para que a Rússia não sofra restrições na receita de exportação de gás em dias potencialmente difíceis.
A russa Gazprom e a China National Petroleum Corporation (CNPC) assinaram um segundo contrato de longo prazo na sexta-feira passada para fornecer 10 bilhões de metros cúbicos de gás natural a partir do extremo leste da Rússia. A Gazprom e a CNPC assinaram o primeiro contrato de 30 anos para fornecimento de gás através do gasoduto Power of Siberia em 2014. Esta linha de 3.000 km começou a operar há três anos, sendo o primeiro duto de gás natural entre a Rússia e China. O novo acordo veio quando o presidente russo estava em visita oficial à China.
O papel do Irã será decisivo no jogo da energia. A cooperação do Irã com a Rússia significa administrar 50% do gás mundial, e a distância entre o Irã e a Rússia significa tornar-se mais competitivo na política energética. O comportamento do Ocidente, e especialmente dos Estados Unidos, no Plano de Ação Abrangente Conjunto (JCPOA) pode persuadir o governo do Irã, que está em situação econômica ruim devido às sanções ocidentais, a mudar seu comportamento regional e internacional. É considerável também que a opinião pública iraniana considere a Rússia como um parceiro histórico não confiável. O Ocidente pode tender a influenciar o jogo energético do mundo mudando a posição contra o Irã.
Se você deseja entender o possível (e complicado) papel do Irã nesse jogo, o convido a ler a próxima parte deste artigo, que será publicada em breve.
Leia a Parte 2 deste artigo.
Notas
[1] Maremotriz é a energia gerada pela transformação do movimento das marés.
[2] Dados estatísticos da Oilprice.com e da Wikipédia; alguns números podem ter mudado devido a atualizações de informações.
Hamid Hajizadeh é jornalista iraniano, escritor e poeta persa residente nos Emirados Árabes Unidos. Hamid é analista político e especialista em Turquia, Afeganistão e nos países do Golfo Pérsico. É formado em engenharia econômica e apresentador-especialista em programas de rádio do Irã.
Elizabeth Hautz é graduada em Administração pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP) e Mestra em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Elizabeth é administradora na Eletrobrás Furnas S.A., e pesquisadora do núcleo de História Antiga e Medieval do CEHAM/UERJ.