Apesar de afirmar que é sua a responsabilidade pela decisão da retirada americana, Joe Biden colocou toda a culpa nos próprios afegãos e em Donald Trump pela impressionante e veloz retomada do Afeganistão pelo Talibã.
Poucas horas antes do discurso de Joe Biden na Casa Branca na segunda-feira, sua primeira fala em público desde que o Talibã assumiu o controle total do Afeganistão, circularam imagens mostrando pessoas desesperadas amontoadas na pista do aeroporto de Cabul, o único meio de fuga do país desde que o Talibã cercou a capital e cortou as rotas de entrada e saída da cidade. De acordo com a ONU, há relatos de que militantes estão fazendo buscas de casa em casa em Cabul procurando pessoas de uma lista de alvos.
Uma multidão de afegãos tentava se agarrar a um jato de transporte militar C-17 dos EUA enquanto a aeronave taxiava. Outro vídeo mostrou imagens terríveis de pessoas caindo do avião enquanto ele decolava. Ao mesmo tempo, tropas americanas alvejaram e mataram dois homens em incidentes no aeroporto. De acordo com o Pentágono, os homens estavam armados, mas não havia evidências de que fossem talibãs. Ao menos sete pessoas morreram em meio ao caos.
A chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que foi “amargo” assistir a esse colapso completo em uma guerra em que a Alemanha e outros aliados da OTAN seguiram os EUA após os ataques do 11 de setembro.
Os voos foram interrompidos até que tropas americanas e turcas pudessem liberar a multidão para reiniciar as operações de voo. Enquanto isso, diplomatas americanos continuam tentando negociar acordos com diversos países para onde possam levar os intérpretes e aliados afegãos em fuga.
John Kirby, porta-voz do Pentágono, disse na segunda-feira que os EUA assumiram o controle do tráfego aéreo no aeroporto de Cabul e que já haviam retomado o transporte aéreo. Ele afirmou que as forças dos EUA estão planejando encerrar a supervisão da evacuação até 31 de agosto, e que esperam transportar até 5.000 pessoas por dia.
Em seu discurso, que durou 19 minutos, Joe Biden não explicou por que seu governo não conseguiu prever um resultado tão desastroso. Ao invés disso, culpou o governo e os militares afegãos, bem como o governo do seu antecessor, Donald Trump, pela catástrofe humanitária em curso. Ele não disse por que, há pouco mais de um mês, ele previu, de forma confiante, que era improvável que o Talibã retomasse totalmente o Afeganistão.
Apesar de declarar que “the buck stops with me”[1], Biden colocou quase toda a culpa nos afegãos pela chocante e rápida reconquista do Talibã. Segundo ele, a vitória rápida e decisiva dos talibãs foi por culpa dos próprios afegãos, afirmando que “Não podíamos lhes dar a vontade de lutar pelo seu futuro. Os americanos não podem e não devem estar lutando e morrendo em uma guerra que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si mesmas”. Ele não mencionou que essas forças não foram remuneradas e que foram prejudicadas pela ausência de tropas, aeronaves e armas pesadas americanas que ocuparam pontos estratégicos por quase duas décadas.
Ele também disse que o desastre era resultado do mal negociado acordo de paz do governo Trump com o Talibã, que havia estabelecido um cronograma para a retirada. No entanto, Biden já havia alterado os termos do acordo, decidindo que todas as forças americanas deveriam se retirar do Afeganistão até 11 de setembro.
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A fala de Biden foi mal-recebida nos próprios Estados Unidos. O problema não é a decisão de sair do Afeganistão, já que pesquisas indicam que a maioria dos cidadãos americanos deseja retirar as tropas. O problema é a maneira como Biden conduziu a retirada.
A decisão de retirar as forças americanas, aeronaves e armas pesadas, e fechar uma série de aeródromos e bases, antes de evacuar os civis, se mostrou desastrosa, levando à pergunta: como um governo liderado por Biden, um presidente com tanta experiência em política externa, avaliou tão mal a situação?
Biden está entre os homens mais experientes que já ocuparam a presidência dos EUA, e sua experiência em política externa foi um dos argumentos de sua campanha eleitoral. Apesar disso, muito pouco de sua política para o Afeganistão ocorreu conforme planejado.
Os planos da Casa Branca previam a retirada de 2.500 tropas americanas deixando um contingente de 650 militares para proteger a embaixada, enquanto os intérpretes, jornalistas e outros afegãos em risco embarcariam com segurança em voos comerciais. Ao invés disso, multidões de afegãos em fuga estão amontoados no aeroporto de Cabul, e Biden está enviando milhares de soldados às pressas para proteger o aeroporto e a retirada caótica. A embaixada americana foi totalmente evacuada na noite de domingo.
Os planos americanos consideravam enviar ajuda financeira ao governo afegão como sinal de uma aliança duradoura, mas o presidente Ashraf Ghani, apoiado pelos EUA, fugiu do país, o governo se desintegrou e o exército depôs as armas.
O discurso de Biden não foi bem recebido nem mesmo em seu próprio partido. O deputado Jason Crow, democrata do Colorado e veterano do Afeganistão e do Iraque, afirmou que as cenas vistas no aeroporto de Cabul poderiam ter sido evitadas. Ele afirmou que foi por isso que ele e outros haviam pedido que as evacuações tivessem se iniciado meses atrás. “Isso poderia ter sido feito de forma deliberada e metódica”, disse Crow, acrescentando que “foi uma oportunidade perdida.”
O deputado Mike Rogers, republicano do Alabama e membro do Comitê de Serviços Armados da Câmara, disse que o discurso de Biden não condiz com a realidade local. “Biden fez muitas acusações, mas foram suas decisões indefensáveis e o fracasso em se preparar que criaram a crise humanitária e de segurança que atualmente se desenrola”, disse ele em um comunicado.
No Afeganistão, a fala de Biden gerou raiva. Saad Mohseni, presidente do Moby Group, uma empresa de mídia, criticou o discurso, especialmente por ele culpar o exército afegão por não ter vontade de lutar. “Como pode um exército lutar sem logística, serviço de manutenção, planejamento e poder aéreo? Tudo isso foi tirado deles”, disse Mohseni.
O vídeo da aeronave com dezenas de pessoas penduradas nas asas vai substituir a imagem do helicóptero em Saigon, transformando-se no símbolo de mais uma retirada lamentável dos EUA do campo de batalha.
Nota:
[1] Expressão americana que significa a aceitação de uma responsabilidade, não a repassando a outra pessoa.