Por Flavio Goldberg* e Valmor Saraiva Racorti*
Um crime bárbaro, reflexo dos tempos que vivemos, colocou um fim trágico à vida de uma jovem e marca indelevelmente a vida dos familiares. Poderia ter sido evitado? Nunca saberemos com certeza, mas cabem reflexões.
Cada época tem seu crime paradigmático, que comprova a tese de que o crime é um ato social, transcende os limites do indivíduo e deve ser compreendido no seu entorno cultural.
Guilherme Alves Costa, jovem viciado em jogos de videogame, assassina com requintes sádicos Ingrid Bueno, moradora de Pirituba com quem ele mantinha contato virtual, traumatizando a opinião pública pelas características perversas de seu comportamento.
Neste caso o que singulariza o crime é o pathos da pandemia, que se reflete num livro (diário) de autoria do criminoso, que pretende mesclar uma proclamação político-ideológica contra o cristianismo com uma obra literária.
Na realidade, é o produto de uma mente mórbida de perversidade criminosa.
A leitura detalhada do documento, que é prova e confissão, mostra uma narrativa característica que traduz o mundo ameaçador e paranoide da Covid-19 e a “guerra” que, literalmente, Guilherme travava contra o “sistema” e com cuja teoria conspiratória alveja sua vítima indefesa, Ingrid.
O texto, com 60 páginas, insiste de maneira obsessiva e desarrazoada no “desmascaramento” para resgatar sua identidade supostamente ameaçada de forma concreta – eis que todos estamos sob fático perigo mortal do pânico sociopata de um covarde que, no feminicídio, descarregou todo o potencial de sua planejada e destrutiva ação.
O tom apocalíptico, de viés pretensamente estético e literário, é outro elemento catalizador que a pandemia sugere através do distanciamento social que acaba por tratar o semelhante como um transmissor em potencial, a cada instante, da morte crudelíssima e sem remédio representada pelo vírus.
Urge que o Estado e as Ciências do Comportamento, a Sociologia, a Psicologia e o Direito acompanhem com urgência o que definimos como CRIME PANDÊMICO, atos cuja natureza corrompe e violenta as normas legais e do espírito.
Os personagens desta tragédia descrevem uma crônica que ficará na história da criminologia pelo depoimento assassino como um caso clássico, uma trama fatal que conjuga um trinômio cujos pilares são, primeiro, um vírus que já matou 250 mil brasileiros, uma doença que sufoca sem piedade o ar que respiramos; segundo, a dimensão de uma Internet alienada, brutal, hipnotizante e sem princípios éticos; e, terceiro, um assassino disposto a matar outrem e, talvez, a si próprio, usando a vítima como objeto de seu mecanismo enlouquecido pela solidão de um sociopata delirante.
LIVRO RECOMENDADO
Sistema de gerenciamento de incidentes e crises: Atirador ativo e múltiplos ataques coordenados
- Wanderley Mascarenhas De Souza, Márcio Santiago Higashi Couto, Valmor Saraiva Racorti e Paulo Augusto Aguilar (Autores)
- Em português
- Capa comum
Infelizmente o Brasil, que vem perdendo a guerra pela incúria na falta de vacinas, ainda contribui com este exemplo de homicídio infame que marca esta página de luto da história.
Que, ao menos, se abra uma discussão sem preconceitos ideológicos sobre “Pandemia e Crime”, para que possamos entender e atuar, cientificamente, na prevenção e no combate a esta superposição de terror.
Um dos perigos deste gamer criminoso é a sua sedução sobre mentes igualmente solitárias e pré-dispostas ao crime.
Melancólico réquiem de uma época.
Compaixão por Ingrid Bueno.
O crime (adendo do editor)
Os detalhes da confissão deste crime bárbaro trazem um alerta aos pais: nunca é demais enfatizar a importância de acompanhar de perto seus filhos e avaliar seus hábitos, atitudes e companhias. Isso pode evitar que se tornem vítimas ou sinalizar comportamentos que indiquem a necessidade de um apoio médico ou de ajuda especializada.
O crime ocorreu em 22 de fevereiro. Os policiais que atenderam à ocorrência relataram que a vítima apresentava sinais de facadas no peito e um ferimento profundo no pescoço; segundo o Boletim de Ocorrência, “aparentando que o autor teria tentado decapitá-la.” Posteriormente o criminoso confirmou essa intenção.
A confissão mostrou frieza. Convencido a se entregar pelo seu irmão, o criminoso afirmou que a vítima tinha “atravessado seu caminho” e que ele planejava um “ataque contra o cristianismo”. Escreveu um diário, o livro mencionado, no qual explicou seus objetivos e os motivos que o levaram a cometer o ato. Afirmou que havia conhecido a vítima pela internet há pouco mais de um mês e garantiu que estava em pleno uso de suas faculdades mentais ao cometer o crime. Em um determinado momento disse que se arrependeu de ter conhecido a vítima, afirmando que ela seria “uma estrela”.
Enfatizou que planejava o ato há duas semanas e que comprou armas brancas e um revólver para seu intento. Filmou a ação e chegou a postá-la no status de seu WhatsApp, mas posteriormente a apagou. Disse que seu livro continha algumas respostas e não negou que pretendia obter “fama” com seu ato e com a publicação de seu diário. Seus familiares de nada suspeitaram.
Dois jovens, duas vidas perdidas ainda em seu início. Mais uma vez, fica o alerta aos Pais: nunca deixem de acompanhar seus Filhos.
*Flavio Goldberg, graduado em Direito pela Universidade Anhembi Morumbi, é pós-graduado, especializado em Direito Processual Civil com capacitação para Ensino no Magistério Superior pela Faculdade Damásio de Jesus e Mestre em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, FADISP. Foi professor de Direito na FAM, Faculdade das Américas. Além de operar em advocacia e consultoria jurídica em seu escritório, atua como coordenador do grupo de Direito, Psicologia e Comunicação na Academia Paulista de Direito. É autor dos livros “Direito: dialética da razão” e “Mediação em Direito de Família: aspectos jurídicos e psicológicos”, e coautor do livro “O Direito no Divã: Ética da emoção”. É palestrante e escreve artigos para diversas publicações. Contato: flavio_gold@hotmail.com.
*Valmor Saraiva Racorti, tenente-coronel da PMESP, realizou o Curso Preparatório de Formação de Oficiais em 1990-1991. Graduado em Direito pela UNISUL, é bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública e possui mestrados em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Publica e Ciências Policiais e Segurança Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança “Cel PM Nelson Freire Terra”. Foi comandante de Pelotão ROTA no 1º BPChq de 1994 a 2006, Chefe Operações do COPOM em 2006, Oficial de Segurança e Ajudante de Ordens do Governador do Estado de 2007 a 2014, Comandante de Companhia ROTA no 1º BPChq de 2014 a 2016 e Comandante do GATE de 2016 a 2019. Com atuação em mais de 500 incidentes críticos, atualmente comanda o Batalhão de Operações Especiais, que compreende o GATE e o COE.