Por George Friedman*, no Geopolitical Futures.
Os “Acordos de Abraão”, como ficaram conhecidos os tratados pelos quais diversos países árabes vêm normalizando suas relações com Israel, estão mudando a configuração do Oriente Médio. Se anteriormente era Israel que enfrentava a hostilidade unificada dos países da região, a situação se inverteu e agora o Irã parece estar se isolando.
Na semana passada, o Marrocos estabeleceu relações diplomáticas com Israel, juntando-se a outros três países árabes – Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão – que normalizaram os laços este ano. No caso do Marrocos, parte do acordo foi o reconhecimento pelos EUA de sua reivindicação ao Saara Ocidental, assim como havia concordado em remover o Sudão da lista de patrocinadores estatais do terrorismo.
Esse processo, que começou com os Emirados Árabes Unidos, está parcialmente enraizado em um paradoxo da política dos EUA para o Oriente Médio. Os Estados Unidos têm desempenhado um papel importante ao endossar implicitamente o processo e, ocasionalmente, colocar um adoçante na mesa. Mas os EUA também deixaram claro que estavam retirando suas forças da região e reduzindo seus compromissos, deixando-a sem o poder que a mantinha unida. A hostilidade pública entre as nações da região, e especialmente com Israel, era possível enquanto os Estados Unidos serviam como coordenador e ponte. Esses países poderiam e trabalharam juntos, mas apenas por meio de contatos secretos e coordenação dos EUA. Sem os Estados Unidos, cada estado foi deixado para agir sozinho ou formar relações significativas como um todo. A política dos EUA obrigou os países da região a enfrentar uma realidade que tentavam esconder: eles precisavam um do outro.
Precisavam um do outro porque o mundo árabe sunita tinha inimigos, nenhum mais perigoso para seus interesses do que o Irã. Os árabes estruturaram sua política partindo do pressuposto de que os Estados Unidos garantiriam seus interesses, e até mesmo sua existência, contra uma ameaça iraniana. Isso ainda é possível, mas o que os EUA fizeram foi criar uma incerteza crítica. O Irã não pode ter certeza do que os Estados Unidos fariam em quaisquer circunstâncias específicas. Nem os árabes. Cada um deve se preparar para a ausência dos EUA, ao invés de simplesmente assumir uma reação americana.
Ao mesmo tempo, os iranianos têm uma posição enfraquecida. Uma de suas estratégias era jogar os estados árabes contra Israel, os Estados Unidos ou entre si. Eles também poderiam tirar vantagem de conflitos que periodicamente surgiam entre estados árabes fragmentados. Agora o Irã tem menos espaço de manobra, enquanto os árabes precisam negociar com os vizinhos ao invés de descarregar o risco e a responsabilidade para os EUA.
A decisão de abrir relações diplomáticas por si só não criaria normalmente uma aliança. Os Estados Unidos e a China têm relações diplomáticas e não são aliados. Mas, no caso do mundo árabe, a questão é diferente. Dentro de cada país existem facções que são hostis a Israel. Qualquer regime que abra relações com Israel deve enfrentar essa realidade. A ameaça aqui é interna, e cada estado que reconheceu Israel quebrou uma barreira. Nos EUA e em Israel, esta é uma pausa bem-vinda. Entre muitos árabes, é uma violação do que tem sido um princípio fundamental. A Arábia Saudita, desconfiada dos sentimentos intensos sobre essas questões em um setor significativo da sociedade, não tomou a atitude de reconhecer Israel, embora tenha cooperado com Israel por um bom tempo. Dada a política da região, o reconhecimento pode muito bem ser uma aliança. Há pouco a perder e muito a ganhar para os países árabes que reconheceram Israel.
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A aliança implícita deixa o Irã em uma posição extremamente difícil. O mundo árabe foi hostil de muitas maneiras antes. Agora está organizado em torno do poder israelense, tornando Israel ainda mais perigoso para o Irã. Além de sanções ruinosas, tensão política interna e a ameaça potencial dos Estados Unidos, agora enfrenta a possibilidade não apenas de hostilidade árabe, mas de alinhamento árabe com Israel. Em muitos aspectos, este é o pior cenário para o Irã, e os serviços de inteligência dispostos contra ele farão tudo o que puderem para encorajar a oposição interna.
O contragolpe do Irã é sério. O processo de reconhecimento deixa os palestinos isolados de seus ex-aliados. O Irã pode se colocar razoavelmente como o único campeão dos palestinos e o único verdadeiro inimigo de Israel. Os estados árabes há muito consideram a Palestina uma questão secundária. Mas o mesmo nem sempre é verdade para seus cidadãos. O movimento do Irã é adotar a causa palestina como sua e falar ao público árabe em termos de traição aos palestinos e capitulação a Israel.
Não está claro se qualquer regime árabe será forçado a mudar de política ou será derrubado. Por outro lado, não está claro se o isolamento formal do Irã causará uma mudança de regime. Mas o que está claro é que se o Irã empreender qualquer tipo de ação militar contra estados que reconheceram Israel, este será livre, e até mesmo bem-vindo, para empreender retaliações desproporcionais. E quaisquer aliados iranianos na região, como os da Síria ou do Iraque, enfrentariam o mesmo. O que esse movimento fez foi alargar amplamente as circunstâncias sob as quais Israel pode atacar o Irã sem enfrentar a condenação no mundo árabe. O equilíbrio de poder mudou dramaticamente na região desde a década de 1970, quando era Israel que enfrentava hostilidade unificada. Agora é o Irã que enfrenta hostilidade. Quão unificado será, ainda não se sabe. A unidade é rara no mundo árabe, mas os riscos para os regimes árabes de participar e desestabilizar a estrutura emergente seriam muito grandes. Muitas coisas podem dar errado, mas é uma redefinição profunda do Oriente Médio, seja lá como for.
*George Friedman é analista geopolítico e estrategista de assuntos internacionais mundialmente reconhecido. É fundador e presidente da Geopolitical Futures, um think tank especializado em relações internacionais e política externa americana. É autor de diversas obras, dentre as quais os best-sellers “Os próximos 100 anos” e “A próxima década”.
muito bom texto um visão bem clara e simples de uma nova realidade que esta se formando no oriente médio, efetivamente o irã e o problema, e o que ocorre eu concordo plenamente com a analogia para muitos governos árabes e um choque de realidade. O pan arabismo acabou a muitos anos. os grande lideres nacionalistas desapareceram. O maior inimigo de um governo baseado em lei islâmica e ao revanchismo dos grupos mais extremistas caso do xiitas no ira e que existem em alguns outros países, mas são minorias. O perigo não é israel. Israel apesar de judeu e uma fonte de poder na região. e muitos estados estão acordando para isto. Parabéns pelo Artigo e pelo excelente trabalho no blog Velho general.
Muito obrigado Geraldo, forte abraço!
Melhor definição para o cenário:
“Quão unificado será, ainda não se sabe. A unidade é rara no mundo árabe, mas os riscos para os regimes árabes de participar e desestabilizar a estrutura emergente seriam muito grandes. Muitas coisas podem dar errado, mas é uma redefinição profunda do Oriente Médio, seja lá como for.” MARIMÓN (2020)
Faltou observar outro ator que se movimenta muito bem nesse terreno, os russos, e além desse entrou nos últimos anos os turcos, enfim… Aquilo lá até o diabo corre.
“Até o diabo corre”, é uma perfeita observação, Paulo! Um abraço!
É muito perspicaz da parte dos EEUU trabalhar nesta “tensão construtiva”, para que os países árabes sunitas reconheçam o Estado de Israel, tirando-lhe um fardo grande de suas costas; como bem colocado no artigo, ter relações diplomáticas não significa ter uma aliança, mas ao menos coloca o Irã (vale lembrar, xiita) com mobilidade reduzida neste campo. Isto tudo sem citar o Iêmen, cuja milícia rebelde houti (com ajuda iraniana) faz estragos na fronteira com a Arábia Saudita. Forte abraço!
Exato Sinclair, e é perspicaz também por parte de Israel, isolando seu (hoje) principal inimigo na região. Grato por comentar, forte abraço!
Muito bem lembrado, movimento acertado de Israel também!