Por Henrique de Oliveira Mendonça* |
Fonte: Military Review 75, nº 2, Edição Brasileira (Segundo Trimestre 2020), p. 15-24, https://www.armyupress.army.mil/Journals/Edicao-Brasileira/Arquivos/Segundo-Trimestre-2020/Guerras-Brasilicas-do-Seculo-XXI/.
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O combate às facções criminosas é uma experiência importantíssima no desenvolvimento de técnicas, táticas e procedimentos frente aos desafios representados por novas ameaças e atores. As tropas brasileiras demonstraram astúcia e flexibilidade na adaptação a esse desafio, e sua flexibilidade remonta às Guerras Brasílicas da história colonial.
Na formação normal […] levava-se em conta o terreno livre, de amplos espaços para o desenvolvimento dos combates e da evolução das brigadas, pois tinham como base a formação de duas linhas […]. No entanto, nas guerras brasílicas, essa formação tinha pouca valia, face às características bem próprias da guerra de emboscadas […]. Os conhecimentos táticos e estratégicos cederam lugar à malícia e ao elemento surpresa […], e pela improvisação dos brasílicos. (Soraya Geronazzo Araujo[1])
Embora o relato inicial descreva uma passagem conflituosa do período colonial brasileiro, são significativas suas semelhanças com a realidade vivenciada por tropas federais nas recentes operações para Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro. A adaptabilidade da Força Terrestre frente aos atos hostis de facções criminosas se alinha à astúcia e à agilidade com que indígenas e brasílicos desenvolviam táticas contra os invasores holandeses ainda na primeira metade do século XVII[2].
As especificidades na forma de guerrear, que foram capazes de se contrapor às doutrinas militares de grandes potências europeias há quatro séculos, demonstram as raízes histórico-culturais da flexibilidade e da capacidade de inovação do soldado brasileiro. De acordo com o historiador John Keegan, a guerra é uma expressão da cultura[3]. Dessa forma, a miscigenação ímpar da sociedade brasileira repercute também no modus operandi das tropas.
O cenário dos confrontos nas comunidades cariocas tem sido amplamente debatido no espectro político e estratégico. As causas da violência urbana, bem como suas possíveis soluções sociais, surgem em fóruns de diversas naturezas. O presente estudo não pretende ingressar nessa pauta, nem mesmo na conceituação ou classificação dessas operações. O enfoque deste trabalho se restringe tão somente às soluções táticas encontradas pelas pequenas frações para se contraporem às ameaças hiperdifusas em um ambiente complexo, não linear, instável, heterogêneo e dinâmico.
Não há como dissociar o tipo de conflito encontrado pelas tropas do Exército Brasileiro (EB) no ambiente densamente urbanizado das favelas da capital fluminense de algumas características que definem a guerra na Era da Informação[4]. Assim sendo, as experiências recentes, aliadas à histórica capacidade inventiva do soldado brasileiro, contribuem para que o EB seja precursor no desenvolvimento de táticas, técnicas e procedimentos para o campo de batalha do século XXI.
Reconhecendo os ganhos doutrinários advindos dessas operações, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO) desenvolveu, no ano de 2017, um eixo temático de pesquisa em que mais de cem capitães investigaram aspectos táticos da participação do EB nas atividades de pacificação de comunidades com altos índices de violência e vácuo de poder estatal, como os Complexos do Alemão e da Maré – territórios marginalizados que se aproximam da definição de black spot formulada por Stanislawski[5].
Assim, este trabalho pretende ampliar a visibilidade de alguns dos resultados obtidos nas pesquisas dos discentes daquele estabelecimento de ensino militar, a partir da perspectiva e experiência pessoal do próprio autor como comandante de subunidade (SU) no último contingente da Operação São Francisco, no Complexo da Maré. O encadeamento lógico deste texto se inicia pela compreensão do ambiente operacional, prossegue com a exposição de ensinamentos colhidos dentro de cada função de combate e, por fim, se encerra com uma reflexão sobre o paradoxo tecnológico que aflige as operações contemporâneas.
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Ambiente operacional
Dimensão física. As dimensões e a conformação das habitações dos aglomerados subnormais representam um obstáculo para o comando e controle (C2) das pequenas frações (grupo de combate, pelotão e SU). No Complexo da Maré, por exemplo, moram cerca de 130 mil pessoas em uma área pouco superior a 4 km2. Ruas estreitas, becos e vielas sem saída se intercalam com uma disposição de casas que se altera quase que diariamente com novas construções irregulares.
Progredir por ruas estreitas, com largura inferior a cinco metros, delimitadas por construções de quatro andares de ambos os lados – cujas janelas mal se podem observar, devido ao emaranhado de fios elétricos de ligações clandestinas – expõe os militares do Exército como alvos em potencial para emboscadas. O assassinato de 134 policiais no Estado do Rio de Janeiro em 2017[6] revela a vulnerabilidade das forças estatais nesse tipo de confronto.
A proteção oferecida por viaturas blindadas é dificultada pela conformação das comunidades e pela instalação de obstáculos que impedem, restringem ou dificultam a trafegabilidade. Trilhos ferroviários, por exemplo, são instalados nos principais pontos de acesso às comunidades. Não raro, em face da aproximação da tropa, pneus são incendiados ao redor dos trilhos para dificultar sua remoção por elementos de engenharia. Ademais, esses obstáculos, quase sempre, são batidos por fogos diretos oriundos de posições barricadas, construídas em profundidade. Outro exemplo de obstáculo que ilustra a engenhosidade dos criminosos é a montagem de brinquedos infantis bloqueando ruas e colocando crianças como escudos humanos. Assim como os obstáculos físicos são batidos por fogos, esse tipo de ardil é “batido” por câmeras aptas a captar imagens das forças legais com o propósito de explorá-las na dimensão informacional.
As boas práticas que conduziram ao êxito as forças de paz brasileiras desdobradas no Haiti, entre os anos de 2004 e 2017, não puderam ser aplicadas em sua plenitude devido a um contexto político, social, cultural e jurídico notadamente distinto. As circunstâncias eram outras, a começar pelo poder de fogo dos atores armados não estatais. Somente nos primeiros cinco meses de 2019, por exemplo, foram apreendidos 239 fuzis no Estado do Rio de Janeiro, o que representa um aumento de 251% em um período de dez anos[7]. Na verdade, a internacionalização de cartéis e o estabelecimento de vínculos com grupos insurgentes e narcoterroristas potencializaram as ações armadas do crime organizado[8], fazendo com que o número de mortes violentas no Brasil supere zonas de conflito, como Síria ou Iraque[9]. Ainda assim, o uso da legítima força coercitiva pelo aparato de segurança estatal sofre as restrições legais impostas pelo ordenamento jurídico, além de se submeter ao escrutínio da opinião pública.
Dimensão humana. A convivência diária com os habitantes locais é essencial para compreender as perspectivas da população nativa. Nesse sentido, as ações desembarcadas auxiliam na interação com as pessoas e devem ser consideradas prioritárias. A coação brutal dos criminosos inibe o apoio ativo dos moradores, que buscam transmitir informações em momentos nos quais se sentem protegidos da constante vigilância dos “olheiros do tráfico”. Frequentemente, durante a execução de revistas individuais ou em locais fechados, cidadãos de bem tentavam fornecer informações aos soldados. Houve relatos, por exemplo, de pessoas que “pediam” para serem revistadas e deixavam bilhetes no bolso.
Cabe destacar, ainda, o impacto que o grave “vácuo civilizatório” existente nas áreas urbanas desassistidas causa sobre a tropa. Apesar da instrução prévia sobre os regionalismos e diferenças culturais, a deterioração social e ética em muitas das comunidades carentes da segunda maior cidade brasileira causa perplexidade para a maioria dos soldados. Oriundos de diversas regiões do país, algumas delas até mais despojadas da ação governamental, muitos militares possuem renda inferior aos habitantes locais. Tal fato gera consternação e reações diversas, cujos reflexos interferem diretamente na liderança das pequenas frações.
Desde a indiferença de cidadãos que se veem rotineiramente sob fogo cruzado à postura reprovável de mães que incentivam seus filhos com tenra idade a hostilizarem a tropa e fazerem apologia a facções criminosas, o choque cultural induz os soldados a duvidarem de sua missão e da efetividade da operação. Muitos moradores, entorpecidos pelo ambiente pernicioso, questionam acerca da legitimidade e da conveniência de se restabelecer o controle estatal sobre a área conflagrada, em face do histórico vazio institucional e da ruptura do tecido social. Isso tudo, somado ao caráter efêmero da missão, pode reduzir o ímpeto das frações na busca por melhores resultados. Todavia, essa tendência de “acomodação” é extremamente perigosa, especialmente para a própria segurança da tropa.
Os comandantes em todos os níveis devem realizar reuniões e conversas periódicas com seus subordinados, a fim de apresentar-lhes os resultados alcançados, compartilhar metas e debater sobre a realidade sociocultural. Outra medida importante é fomentar o envolvimento de todos os militares, incluindo os elementos de apoio, com as ações no terreno. A experiência direta junto às pequenas frações proporciona aos oficiais e assessores do estado-maior, operadores de guerra eletrônica e analistas de inteligência, dentre outros, melhor compreensão acerca do dinamismo e urgência das necessidades das tropas desdobradas diuturnamente no terreno.
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Faz-se necessário, também, compreender os pilares de sustentação das forças adversas. Obviamente, o lucro financeiro é a motivação primária do tráfico de drogas e outros ilícitos correlatos – cobrança de taxas e extorsão dos moradores, venda de produtos roubados, prestação de serviços ilegais, etc. Porém, ambições materiais ou necessidades financeiras não constituem o principal fator de atração para o recrutamento e aliciamento das reservas humanas disponíveis para as organizações criminosas. A maioria dos jovens cooptados pelo crime – muitos antes dos dez anos de idade – é atraída pelo status de poder, identidade e pertencimento ostentado pelos membros das diferentes facções. Esse poder não é decorrente direto dos recursos financeiros advindos do comércio ilegal de drogas. Muitas vezes ele se materializa no simples porte de armas, no espírito desafiador da ordem e na ascensão social proporcionada pelo ingresso na hierarquia do tráfico. Trata-se daquilo que é comumente conhecido na América Latina por “narcocultura” ou, nas palavras do ex-Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Coronel Mário Sérgio Duarte, “ideologia de facção”. Esse conceito é relevante para o enfoque das operações. Estrangular o braço financeiro pode ser uma solução interessante a longo prazo, apesar da dificuldade de abranger todas as ramificações criminosas nas mais de 700 favelas do Rio de Janeiro. Porém, sua influência sobre a reserva mobilizável cooptada será quase irrelevante no curto prazo.
Assim sendo, cresce em importância a efetividade das pequenas frações para coibir ilícitos, capturar líderes e inibir a ostentação de armas e, dessa forma, reduzir o status de poder das facções criminosas no interior das comunidades. A ampliação de horizontes por meio de iniciativas informacionais agressivas, geração de emprego e provimento de uma educação qualificada é fundamental. Além disso, a própria postura profissional dos soldados tende a se contrapor aos atrativos oferecidos pelo modelo imposto pelos grupos criminosos às novas gerações.
Dimensão informacional. A opinião pública se mostra suscetível à enorme influência das organizações de mídia, cuja narrativa pré-formatada, quase sempre, constitui um óbice à atuação da força legal. Êxitos táticos na dimensão física são facilmente ofuscados ou neutralizados por ações informacionais, sobretudo, quando são expostos erros procedimentais por parte dos militares ou ocorrem danos colaterais.
Os desafios táticos para as tropas também advêm de um conflito na mentalidade estratégica. Apesar do crescente debate sobre o emprego das forças armadas em megacidades, existe uma lacuna doutrinária acerca de técnicas de emprego das pequenas frações. Ademais, o mau uso das regras de engajamento e dos dispositivos legais vigentes obstrui a consecução das metas operacionais. A irrelevância do poder destrutivo frente ao efeito psicológico das ações é consensual no nível político-estratégico, porém como devem agir as pequenas frações para influenciar públicos-alvo e impor sua narrativa sobre as mídias tradicionais e sociais, a fim de adquirir uma aceitação popular robusta?
Comando e Controle
Ao se depararem com um novo tipo de problema militar, os soldados demonstram lentidão na adaptação dos meios e processos tradicionais para uma batalha sem objetivos definidos no terreno. Muitos comandantes se apegam ao conceito de que a capacidade de planejar aprendida nas escolas militares é suficiente para triunfar em qualquer campo de batalha. Desse modo, a velocidade do planejamento minucioso do estado-maior se torna incompatível com a dinâmica do “front”.
A adaptação do processo de planejamento é fundamental para o sucesso da missão. Os comandantes nos níveis táticos devem rever desde a adequação das simbologias militares a um terreno completamente compartimentado à proposição de parâmetros coerentes para o exame de situação, como a atitude da população e o grau de resistência oferecido durante prisões e apreensões.
As subunidades podem atuar em zonas de ação próprias ou em coordenação com as outras subunidades na área destinada a um batalhão. Durante a ocupação do complexo de favelas da Maré, esta última opção se mostrou mais efetiva pela possibilidade de execução de ações de maior envergadura e pela reduzida extensão das zonas de ação dos batalhões – inferior a 2 km2.
A maioria das ações foi desenvolvida no nível pelotão, por meio de patrulhas e ocupação de pontos fortes. Assim, o melhor emprego do comandante de SU tende a ser na coordenação das ações a partir de seu posto de comando tático, estático ou embarcado em uma viatura leve de C2, com disponibilidade de acompanhamento das ações por georreferenciamento, monitoramento das comunicações das forças adversas, imagens de vetores aéreos e de câmeras portáteis conduzidas pela tropa. A capacitação da seção de comando da SU é essencial para a correta análise e assessoramento do comandante, que, por si só, é incapaz de processar todas as informações no dinamismo exigido pela operação (veja a Figura 1).
O excesso de informações para os militares nas patrulhas bem como as interferências dos “comandantes-helicópteros”[10] configuraram os principais óbices para a condução das pequenas frações. Quanto à consciência situacional, a dificuldade de identificação da origem dos disparos e até mesmo dos agentes perturbadores da ordem pública (APOP) corrobora com as características da “guerra no meio do povo”[11]. Nesse sentido, radares de identificação de tiro se revelam um recurso imprescindível para a segurança da tropa e da população local e para a eficiência da manobra tática.
O surgimento de soluções tecnológicas causa deslumbramento por parte de militares nos diversos níveis. Entretanto, a sua disponibilidade deve ser restrita, especialmente para os que operam em primeiro escalão, tendo em vista a perda de foco no ambiente e a criação de dependência intrínseca, o que prejudica a própria iniciativa da fração, além de retardar a tomada de decisões, por vezes simples e urgentes.
Nesse sentido, o comandante de pelotão seria o único a portar um tablet robustecido, capaz de transmitir e receber dados, como a localização de ameaças. No que tange ao sensoriamento, sugere-se o emprego de um detector portátil para identificar vestígios de explosivos, pólvoras e drogas, a fim de facilitar o reconhecimento de APOP, que muitas vezes se misturam ao restante da população após perpetrarem um ato hostil contra a tropa.
Movimento e Manobra
A preparação das pequenas frações para operações dessa natureza deve receber especial atenção. A cobertura midiática sobrevaloriza ações individuais e aumenta a exigência de treinamento dos “cabos estratégicos”[12]. Dentre as principais habilidades a serem desenvolvidas na fase anterior à missão se destacam a progressão em diferentes situações, a execução de tiro prático e a verbalização para situações de contato com a população e APOP. Esta última sofre determinante influência do regionalismo e impacta sobremaneira na conquista do apoio ativo da população, além de evitar a escalada de crises desnecessárias.
Uma proposta sugerida de adestramento específico possui duração mínima de oito semanas e inclui preparação física funcional, com enfoque no fortalecimento do core, haja vista os longos períodos de permanência na posição de pé com sobrepeso dos equipamentos, capacete e colete balístico. Técnicas individuais, como a ocupação de posições de tiro adaptadas ao terreno urbano e o tiro com a “mão fraca”, além de táticas das frações, como a adequação do conceito de base de fogos a um ambiente humanizado e o aprimoramento do atendimento pré-hospitalar tático, exigem elevada carga horária para automatizar reflexos.
A evolução das manobras táticas das pequenas frações foi decisiva para o sucesso das operações. Inicialmente, os pelotões realizavam patrulhas – a pé ou embarcados – com itinerários aleatórios. A efetividade das ações foi sendo reduzida à medida que os APOP se “adaptavam” ao modus operandi da tropa. Nesse sentido, os comandantes passaram a executar ações flexíveis, com a finalidade de manter o princípio da surpresa, essencial nesse tipo de operação. Manobras como “cavalo de Tróia”, “meia-volta” e a adaptação do cerco para o ambiente compartimentado das áreas conflagradas são exemplos da astúcia do soldado brasileiro (veja a figura 2).
Os checkpoints e os static points são recursos importantes, principalmente para a obtenção de informes e arregimentar “corações e mentes” da população local. O trato cordial aproxima os soldados dos moradores, que muitas vezes se sentem seguros para transmitir informações úteis para a operação. Quanto à eficiência dos postos de bloqueio, a adoção do “efeito cascata” (alternância sistemática das vias bloqueadas a cada dez minutos) reduz a permeabilidade das inúmeras vias de acesso, amplia o alcance de um pelotão (geralmente restrito a três vias de acesso) e causa desorientação aos APOP, que tentam entrar ou sair da comunidade.
Logística
O apoio ao pessoal teve papel preponderante na manutenção do moral da tropa. Durante a Operação São Francisco, a rotina das operações ocorria em escala de quatro horas de operação para oito horas de descanso, em sequência ininterrupta. Entretanto, o tempo para o briefing e apanha de armamento e munição, assim como o sentido inverso no retorno da missão, consumia mais de uma hora do descanso dos militares. Assim, a disponibilidade de serviços, como lavanderia e internet, e a assistência social e religiosa ajudaram a prevenir o estresse e a fadiga.
Quanto ao apoio de material, destaca-se a eficiência do controle de danos, proporcionado pela tropa de engenharia. A natureza da missão impunha, por vezes, o tráfego de viaturas blindadas em ruas estreitas ou com piso frágil; ocorrendo, invariavelmente, danos à infraestrutura pública ou propriedades particulares. A presteza e qualidade do reparo contribuíram para a conquista do “terreno humano”.
No que concerne à infraestrutura, a terceirização de serviços logísticos para a instalação e manutenção de contêineres se mostrou mais ágil e garantiu um adequado suporte para o bem-estar e segurança da tropa[13]. Destaca-se a necessidade de ambientes específicos para a realização de briefings e debriefings, com meios visuais que facilitem a emissão de ordens, assim como para os trabalhos de “descontaminação”, nos quais os militares – em uma sequência de linha de produção – retiram seus equipamentos individuais, descautelam armamento e munição e fazem uma assepsia básica antes de acessarem os alojamentos.
Inteligência
No âmbito das pequenas frações, o ciclo de inteligência ainda constitui um tabu. Muitas vezes excluída do processo de obtenção, produção e difusão de informações, a SU coletava dados nas operações de rotina e os transmitia ao escalão superior. Porém, não recebia conhecimentos de inteligência em tempo oportuno. Dessa maneira, as células de inteligência da SU – chefiadas pelo subcomandante – foram mais dinâmicas e eficientes, principalmente no suporte aos briefings dos pelotões.
A despeito da inegável virtude de construir laços de confiança com os habitantes locais, a frequência dos incidentes – cerca de três atos hostis diários, com disparos de armas de fogo[14] – conduzia os pelotões a uma postura de autoproteção, em que a segurança sobrepujava a empatia. Diante desse cenário, o adjunto de pelotão exerce um papel destacado na dimensão psicossocial da operação. Em geral, o adjunto é o indivíduo mais experiente e maduro do pelotão. Essa característica, somada ao seu papel secundário na manobra da fração, lhe confere uma perspectiva mais hábil na análise do “terreno humano”. Nesse sentido, salienta-se também a eficiência do emprego de militares do segmento feminino nas abordagens, principalmente de idosos, mulheres e crianças, importantes fontes de dados.
Observaram-se alguns equívocos na interpretação dos parâmetros atinentes ao apoio da população. Para muitos comandantes táticos, a melhor forma de angariar apoio da população reside na realização de ações cívico-sociais, nas quais a tropa promove serviços gratuitos – corte de cabelo, atendimento odontológico, casamentos e entretenimento para crianças, entre outros. Sem dúvida, há ganhos nesse tipo de atividade; contudo, a percepção das pequenas frações que convivem diariamente nas ruas indica a eficiência das ações tipicamente militares, destinadas a prover segurança à população.
Logo após uma operação bem-sucedida, com a prisão de lideranças das facções criminosas, há um crescimento expressivo no número de denúncias anônimas, demonstrando o aumento da confiança, além de elogios e agradecimentos “velados” pelos moradores durante as abordagens cotidianas. Geralmente, as operações militares mais efetivas são seguidas de manifestações orquestradas pelos próprios criminosos, amplamente exploradas pela mídia, e isso leva alguns comandantes, em escalões superiores, a avaliar equivocadamente o êxito da ação.
Paradoxo tecnológico
Os óbices inerentes ao emprego indiscriminado dos recursos tecnológicos nos conflitos pós-industriais já foram amplamente debatidos na literatura especializada. Samuel Marshall critica o microgerenciamento do campo de batalha e atribui à pressão indevida dos escalões superiores uma distorção dos objetivos dos subordinados, divididos entre reagir aos estímulos do ambiente operacional e responder às mensagens inoportunas de seus comandantes[15].
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De fato, as experiências nas operações no Rio de Janeiro corroboram esse intervencionismo excessivo na manobra do escalão subordinado. Na ingênua tentativa de ajudar um jovem tenente em meio a um confronto, surgia no posto de comando um comandante de batalhão ávido por compreender os pormenores da situação desde sua origem, com perguntas que variavam entre “onde você está?” e “quantos disparos foram realizados pelo seu pelotão?”.
Outra mudança de mentalidade necessária diz respeito à “tecnofilia”. Muitos comandantes se encantam com os sofisticados recursos tecnológicos disponíveis e tendem a desviar sua finalidade. Houve caso, por exemplo, em que um comandante de companhia se viu obrigado a alinhar todos os grupos de combate de uma SU, cada qual em um beco, em meio a uma imensa confusão arquitetônica, a fim de produzir uma imagem satisfatória no software de C2 georreferenciado.
Ainda que existam inúmeros exemplos depreciativos do uso da tecnologia e da importância do domínio humano na guerra na era da informação, são inegáveis as vantagens competitivas que ela promove no campo de batalha. Nesse tipo de operação, desencadeada nas megacidades contra atores não estatais, a importância das soluções inovadoras se eleva. O maior abismo existente entre os contendores se encontra na capacidade tecnológica, e isso deve ser explorado ao máximo.
Conhecer o terreno melhor do que os próprios moradores locais é impossível; portanto, o princípio da surpresa pode ser mantido por meio de ações como interferência nas comunicações dos criminosos, localização eletrônica e monitoramento de imagens por vetores aéreos. Nesse sentido, é importante compreender o modus operandi dos APOP, com suas peculiaridades e limitações, para então definir a melhor manobra tática, integrando as possibilidades tecnológicas disponíveis.
Os Sistemas de Aeronaves Remotamente Pilotadas (SARP) constituem um recurso valioso, sobretudo suas capacidades de “jammeamento” das mensagens entre as linhas de defesa dos criminosos, pois a compartimentação dos conglomerados urbanos restringe a capacidade de a guerra eletrônica neutralizar as comunicações dos vigias (“olheiros”), que dão o alerta sobre a aproximação da tropa. Outra possibilidade funcional para um SARP é executar ataques direcionais não letais, como aspergir compostos químicos incapacitantes, a fim de retardar a fuga e desnortear ações de defesa da força adversa (veja a figura 3).
Considerações finais
A despeito do estéril debate acerca da legalidade e adequação do emprego das Forças Armadas no enfrentamento a grupos armados associados ao crime organizado, os aprendizados táticos, principalmente para as pequenas frações, foram inegáveis. Ainda que muitos advoguem perspectivas de “desnaturalização” das instituições militares[16], o combate às facções criminosas nas favelas do Rio de Janeiro representa uma experiência ímpar para o desenvolvimento de técnicas, táticas e procedimentos frente aos desafios representados por novas ameaças e novos atores.
Constata-se que a adaptação doutrinária ao cenário hiperdifuso das comunidades encontra barreiras de diversas naturezas. O histórico inercial das instruções voltadas exclusivamente para as guerras entre Estados nacionais antagônicos e a própria mentalidade tradicionalista de aversão às atividades ligadas à segurança pública, por exemplo, constituíram óbices para interpretar as ações como possíveis fontes de lições aprendidas. Para algumas funções de combate, como a logística, as operações no próprio território realmente restringem a amplitude das expertises. Por outro lado, o dinamismo e complexidade das ações no escalão SU, especialmente das armas-base, produziram significativos ensinamentos que precisam ser compilados, estudados e implementados, haja vista a tendência dos cenários futuros.
Diante dos novos desafios impostos às tropas brasileiras, observou-se a astúcia para adaptar o poderio militar em suas táticas e ardis, especialmente nas pequenas frações. Essa flexibilidade remonta às Guerras Brasílicas da história colonial, e o sucesso em ambos permitiu o protagonismo brasileiro no desenvolvimento de inovações doutrinárias frente aos conflitos na Era da Informação.
*Henrique de Oliveira Mendonça é major do Exército Brasileiro e doutorando em Ciências Militares pelo Instituto Meira Mattos/Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Formado em 2005 na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), concluiu mestrado profissional em Ciências Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) em 2013. Comandou uma Força de Contingência, valor Subunidade, durante a Operação Copa do Mundo FIFA 2014. Em 2015, comandou uma Companhia de Fuzileiros na Operação São Francisco, no combate à insurgência criminal no Rio de Janeiro. Em 2016-17 foi instrutor da EsAO e coordenou um eixo temático de pesquisa sobre o emprego tático do Exército Brasileiro no combate ao crime organizado.
Referências
[1] Soraya Geronazzo Araujo, A Nova Guerra, a Guerra Brasílica e a Guerra dos Sertões: Uma Nova Perspectiva sobre a Guerra Dos Bárbaros, Revista de Humanidades 9, nº 24 (set/out. 2008).
[2] Evaldo Cabral de Mello, Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654 (Rio de Janeiro: Forense Universitária/Edusp, 1975), p. 217.
[3] John Keegan, Uma História da Guerra (São Paulo: Cia das Letras, 1994), trad. Pedro Maia Soares.
[4] Alessandro Visacro, A Guerra na Era da Informação (São Paulo: Contexto, 2018).
[5] Marília Carolina Barbosa de Sousa, O Conceito de Áreas Não Governadas ou Black Spots e os Desafios Políticos e Teóricos para a Agenda de Segurança do Pós-Guerra Fria, Ensaios do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) 14 (2012), acesso em 2 jul. 2019, http://ieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/08/ENSAIO-DO-IEEI-N-141.pdf.
[6] Paula Bianchi, Após 2017 com 134 assassinados, PM é baleado no Rio; por que essa é a 1a de muitas mortes, UOL, 3 jan. 2018, acesso em 26 jul. 2019, https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/03/rj-termina-2017-com-134-pms-mortos-por-que-esse-numero-nao-deve-cair-em-2018.htm.
[7] Carolina Heringer, Oito toneladas de drogas e 31 armas apreendidas podem ter chegado à Maré pela Baía, O Globo (site), 18 jul. 2019, acesso em 24 jul. 2019, https://oglobo.globo.com/rio/oito-toneladas-de-drogas-31-armas-apreendidas-podem-ter-chegado-mare-pela-baia-23817176.
[8] Saulo Pereira Guimarães, O comércio de armas e drogas financia o terrorismo, afirma Witzel, O Globo (site), 23 jul. 2019, acesso em 24 jul. 2019, https://oglobo.globo.com/rio/o-comercio-de-armas-drogas-financia-terrorismo-diz-witzel-sobre-hezbollah-23826548.
[9] Daniel Cerqueira et al., ed., Atlas da Violência 2019 (Brasil: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019).
[10] Lynn Marie Breckenridge, Colocando Limites no “Comandante-Helicóptero”: Como Superar a Aversão ao Risco e Estimular a Iniciativa Disciplinada no Exército dos EUA, Military Review 73, nº 1, Edição Brasileira (Primeiro Trimestre 2018): p. 41-49.
[11] Rupert Smith, A Utilidade da Força: A Arte da Guerra no Mundo Moderno (Lisboa, Portugal: Edições 70, 2008).
[12] Charles C. Krulak, The Strategic Corporal: Leadership in The Three Block War, Marines Magazine (Jan. 1999), acesso em 31 jul. 2019, https://apps.dtic.mil/dtic/tr/fulltext/u2/a399413.pdf.
[13] Luciano Melo de Oliveira Junior, A Crise da Segurança Pública na Agenda da Defesa Nacional: O Caso do Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem do Estado do Rio de Janeiro de 2010 a 2017 (dissertação de mestrado, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, 2018), p. 64-65.
[14] Visacro, A Guerra na Era da Informação, p. 19.
[15] Samuel Lyman Atwood Marshall, Homens ou Fogo? (Rio de Janeiro: Bibliex, 2003), trad. Moziul Moreira Lima, p. 94-96.
[16] Marcelo Neival Hillesheim de Assumpção, O Emprego das Forças Armadas Mexicanas no Combate ao Crime Organizado, Military Review 74, nº 2, Edição Brasileira (Segundo Trimestre 2019): p. 70-80.
Excelente texto. Mesmo um leigo consegue, após a leitura, adquirir certa noção das dificuldades operacionais inerentes a tais operações.
Grato Osmar, vou repassar ao Maj Henrique. Obrigado pelo comentário, forte abraço!
Que leitura prazerosa. Um texto com uma redação primorosa, bem fluida, de fácil leitura e rica em dados técnicos a nível de leito (o leitor é leigo).
Textos e artigos assim são tão valiosos e importantes que TODOS os cidadãos deveriam ler para entender, compreender, apoiar e exigir ações mais rápidas, coordenadas e profícuas das autoridades políticas, policiais, sociais…
Um grande obstáculo, para o êxito de qualquer ação policial/militar é a mídia. Um caso só ilustra o desastre de toda uma campanha: Na segunda guerra mundial, o general Patton, ao dar um tapa no rosto de um soldado americano que, na enfermaria, Patton entendeu que estava de “corpo mole”. O que a mídia fez? Destroçou a “imagem” do velho general. O que restou ao comandante Eisenhower? Afastá-lo. Lembrando que Patton foi um dos mais brilhantes generais americanos.
Parabéns ao Velho General por divulgar e dar acesso à leitura de um artigo tão rico e proveitoso. Obrigado.
Abraços a todos que ajudam a disseminar a boa semente do Velho (e bom) General.
A mídia é um negócio complicado. Não podemos viver sem ela, mas quando é aparelhada…