Por Paulo Roberto da Silva Gomes Filho* |
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A pandemia do COVID-19 parece ter removido a guerra na Síria do noticiário. No entanto, o conflito permanece ativo e envolvendo, além dos sírios, a Rússia e a Turquia em lados opostos. A pandemia agrava a já terrível situação das populações afetadas pela guerra.
A crise mundial provocada pela pandemia da COVID-19 silenciou o noticiário sobre a guerra civil na Síria, que envolve como protagonistas, além dos próprios sírios, a Turquia e a Rússia. Entretanto, o conflito permanece, e a pandemia se soma aos terríveis efeitos da guerra sobre as populações das áreas afetadas.
A Turquia e a Rússia estão em lados opostos na guerra civil da Síria. Os russos apoiam o governo de Bashar al-Assad, enquanto os turcos apoiam algumas das forças rebeldes que se insurgiram contra o governo. Apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin possuem boas relações pessoais. Essa proximidade foi importante para que os dois países firmassem o Acordo de Sochi, em 2018, no qual se criou uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria, fronteira com a Turquia.
Esse acordo foi transformado em “letra morta” com a última ofensiva das tropas sírias, decisivamente apoiadas pela Força Aérea Russa, sobre a região de Idlib. Na ofensiva, que destruiu a infraestrutura da cidade, vitimando e expulsando centenas de milhares de civis, dezenas de soldados turcos que estão na região foram mortos. Houve reação turca, e as tensões entre a Turquia e a Rússia atingiram altos níveis.
Os dois presidentes voltaram à mesa de negociações e, no último dia 5 de março, anunciaram um novo acordo de cessar-fogo. Foi anunciado também um corredor de segurança ao longo da rodovia M4, que atravessa a província, ficando estabelecido que ela deverá ser patrulhada por tropas de ambos os exércitos.
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Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado, quando os EUA declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na Síria e, em razão disso, decidiram retirar o grosso de suas tropas da região. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “zona de segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados que estão hoje em território turco.
A retirada norte americana também proporcionou a liberdade de ação que faltava para que o presidente sírio, Bashar al-Assad, decidisse desencadear uma ofensiva final sobre uma das últimas porções do território sírio que não estão sob o controle de seu governo, justamente as regiões de Idlib e Bab al-Hawa, na fronteira com a Turquia.
Assim, a operação turca e a ofensiva síria, executadas ao mesmo tempo e na mesma zona de ação, resultaram nos confrontos que se viram. A ofensiva do exército sírio ocorreu em regiões densamente povoadas, agravando a tragédia humanitária. Somente de dezembro até hoje, estima-se que 950 mil pessoas fugiram, na sua maioria mulheres e crianças, tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região.
Com a pandemia, os refugiados estão ainda mais vulneráveis. Quando a doença atingir Idlib ou os campos de refugiados, que sofrem com precárias condições sanitárias, as consequências poderão ser terríveis.
Mesmo antes da pandemia, a tragédia humanitária em Idlib não obtinha quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotam no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estavam concentrados nas eleições presidenciais deste ano. Já as potências europeias, apesar de preocupadas com a possibilidade de a Turquia abrir as portas para que milhões de refugiados rumem em sua direção, não possuíam força política para influenciar os rumos no conflito. ONU e demais organismos internacionais não encontravam soluções viáveis. No momento, com todos os esforços voltados para a COVID-19, parece ainda mais distante a chance de adoção de alguma medida prática em direção à solução do problema.
Assim, repousam sobre a Rússia e a Turquia os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Mas não parece disposta a comprometer-se firmemente no apoio ao combate ao coronavírus na região.
A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Vizinha da Síria, envolvida em uma ação militar colhida por uma pandemia inesperada e gravíssima, poderá ter que lidar com as consequências de uma tragédia humanitária de enormes proporções em sua fronteira. É muito pouco provável que o país, sozinho, tenha os meios necessários para este enorme desafio.
*Paulo Roberto da Silva Gomes Filho é Coronel de Cavalaria do Exército Brasileiro. Foi declarado aspirante a oficial pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1990. É especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Escola Superior de Guerra (ESG) e em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina; possui mestrados em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e em Defesa e Estratégia pela Universidade Nacional de Defesa, em Pequim, China. Foi instrutor da AMAN, da EsAO e da ECEME. Comandou o 11º RC Mec sediado em Ponta Porã/MS. É autor de diversos artigos sobre defesa e geopolítica e atualmente exerce a função de assistente do Comandante de Operações Terrestres, além de ser o gerente do Projeto Combatente Brasileiro (COBRA). E-mail: paulofilho.gomes@eb.mil.br.