Por Albert Caballé Marimón* |
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Esta análise visa entender o que a experiência urbana russa na Chechênia indicou tanto sobre suas capacidades e operações, quanto sobre guerra urbana em geral, com lições a ser aprendidas por militares de outros países. Evitar o combate urbano, embora preferível, é muitas vezes impossível. Planejadores devem considerar que uma força residente tem vantagens em relação a um agressor estrangeiro, mesmo tecnicamente superior.
A RAND Corporation realizou uma análise da guerra da Chechênia, comparando a primeira, de 1994-1996 com a segunda, iniciada em 1999. O relatório, de autoria de Olga Oliker, é bastante extenso e foi escrito em 2001, portanto bem antes do final do segundo conflito (encerrado em 2009), e se concentrou principalmente no combate em áreas urbanas, embora a versão completa avalie também outros aspectos.
O trabalho foi desenvolvido com o objetivo de entender o que a experiência urbana russa na Chechênia indicava tanto sobre suas capacidades e operações, quanto sobre a guerra urbana em geral, com lições a ser aprendidas por militares de outros países. O relatório completo, que pode ser encontrado online, é intitulado Russia’s Chechen Wars 1994-2000 – Lessons from Urban Combat. Aqui, nós apresentamos uma tradução e adaptação do resumo introdutório, o qual por si só proporciona uma visão bastante interessante. Não obstante, recomendamos a leitura da versão completa (em inglês).
Resumo
Os soldados russos que entraram em Grozny, a capital chechena, em dezembro de 1994 não esperavam combate. Eles estavam confiantes de que seu inimigo, uma força rebelde que buscava a independência da Chechênia do domínio russo, era destreinado e desorganizado; que a visão de tanques nas ruas seria suficiente para fazê-los recuar. Os soldados russos não tinham motivos para pensar o contrário. Os comandantes disseram que não havia com o que se preocupar.
Não demorou muito para perceberem o quanto estavam errados. Para os soldados que passaram a véspera de Ano Novo atacando a cidade, Grozny – que em russo significa “terrível” ou “ameaçador” – fez jus ao nome. Embora os russos finalmente tenham conseguido assumir o controle da cidade, a curva de aprendizado foi íngreme e os custos foram altos. Além disso, a vitória durou pouco. Uma contraofensiva rebelde, seguida de um acordo negociado, encerrou a guerra na Chechênia no outono de 1996 e as forças russas deixaram a região.
Em dezembro de 1999, tropas russas entraram novamente em Grozny. Da mesma forma que cinco anos antes, se mostraram despreparadas para a força e competência de seus adversários, apesar da preparação e esforço significativos feitos desta vez. Enquanto houve excesso de confiança em 1994, uma dinâmica muito diferente entrou em jogo em 1999. Se antes os russos acharam que uma sangrenta batalha urbana não era um perigo real, desta vez seus líderes militares acreditavam que tinham um plano para evitar essa necessidade: artilharia e ataques aéreos, pensaram eles, forçariam o inimigo a se submeter. Esse plano justificou a quase total falta de atenção ao combate urbano no treinamento preparatório.
No entanto, a resistência chechena estava preparada. Em vez de serem expulsos pela artilharia e ataques aéreos russos, os rebeldes se entrincheiraram e esperaram, usando uma rede de bunkers e túneis subterrâneos. Quando as forças russas entraram na cidade, seus planos para subjugar uma resistência residual se mostraram insuficientes, pois tinham pela frente uma defesa completa. Como as tropas russas mais uma vez não haviam sido treinadas para o ambiente urbano, novamente estavam despreparadas para a luta que tiveram que enfrentar.
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Geopolitica da Russia Contemporanea
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Embora a falha na preparação para o combate urbano tenha sido um erro fundamental dos russos nas duas guerras na Chechênia, ela não foi a única. Prejudicada por pouco treinamento e suprimentos, equipamentos decrépitos e planejamento pobre, a guerra de 1994-1996 apresentou uma imagem clara de quanto essa força, outrora grande, havia se deteriorado. Também demonstrou o quão mal as estruturas organizacionais militares russas funcionavam quando as forças singulares eram chamadas a trabalhar em conjunto. A segunda guerra, que começou no outono de 1999, mostra algumas melhorias reais, particularmente no planejamento e coordenação de forças, táticas básicas e relações públicas. No entanto, outras dificuldades permanecem.
Grozny I: erros russos
Deterioração
- Os soldados não tinham treinamento adequado e muitos eram incapazes de usar o equipamento de visão noturna, blindados, armamentos etc. Além disso, grande parte do material estava em más condições e o profissionalismo militar estava em falta em todos os níveis;
- Unidades ad hoc foram montadas às pressas e não treinaram em conjunto antes de entrarem em combate.
Otimismo injustificado
- Apesar das amplas evidências em contrário, os russos acreditavam que a cidade não estava bem defendida. Eles subestimaram grosseiramente seu inimigo e superestimaram suas próprias capacidades;
- O planejamento antecipado foi feito de forma fortuita, otimista e carecia de planos de contingência;
- Os russos não conduziram uma adequada preparação da inteligência do campo de batalha (IPB, Intelligence Preparation of the Battlefield);
- Apesar das afirmações em contrário dos comandantes, as forças russas falharam em fechar todos os acessos a Grozny.
Problemas de coordenação de forças
- A ampla gama de ministérios e organizações com tropas empregadas na Chechênia possuíam estruturas de comando concorrentes;
- A coordenação entre as unidades do Ministério da Defesa (MoD, Ministry of Defense) e do Ministério de Assuntos Internos (MVD, da sigla em russo), entre as forças terrestres e aéreas e entre as tropas em terra era péssima;
- A quantidade de forças falhou em compartilhar inteligência. Utilizavam equipamentos e protocolos de comunicação incompatíveis. Além disso, havia tropas que ignoravam seus próprios protocolos e muitas vezes se comunicavam abertamente, arriscando a si próprias e as demais;
- Em parte por causa desses problemas, o fratricídio foi a principal causa de morte dos soldados russos;
- Houve pouco esforço para passar lições aprendidas e táticas desenvolvidas para outras tropas. Assim, o conhecimento conquistado com dificuldade era geralmente perdido entre uma batalha e a seguinte.
Embora essa lista tenha sido extraída predominantemente da experiência russa de combate urbano em Grozny, nenhum desses erros é exclusivo do ambiente urbano. Mesmo o fracasso em reconhecer que o solo urbano favorece a defesa é amplamente aplicável (a maioria dos terrenos favorece a defesa). Os problemas que os russos enfrentaram em Grozny os atormentaram durante toda a primeira guerra na Chechênia.
Grozny II: melhorias russas
Os russos estudaram cuidadosamente os erros da primeira guerra e suas forças foram capazes de implementar melhorias importantes em várias áreas. Embora pouco esforço tenha sido direcionado ao combate urbano, o impacto foi sentido nos combates em Grozny entre 1999 e 2000.
LIVRO RECOMENDADO:
Fangs of the Lone Wolf: Chechen Tactics in the Russian-Chechen War 1994-2009
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Preparação
- Houve planejamento (embora pensado para subjugar pequenos bolsões de resistência em uma cidade derrotada ao invés de atacar uma metrópole bem defendida), movimentos de tropas coordenados e confusão limitada;
- Foi efetuado um melhor isolamento da cidade, ainda que incompleto;
- Aprimoramentos nas provisões de alimentos e suprimentos evitaram que soldados passassem fome nas linhas de frente, como ocorreu na guerra anterior;
- Um controle rigoroso da imprensa e de informações, em conjunto com uma campanha profissional de relações públicas, construiu e manteve o apoio público.
Coordenação
- Uma hierarquia única sob comando do Ministério da Defesa simplificou e melhorou o Comando e Controle;
- A coordenação de forças e sincronização de operações aéreas e terrestres melhorou bastante;
- Um melhor compartilhamento de informações e IPB tornou possível um melhor planejamento e implementação.
Táticas
- O uso de blindados foi mais seguro e mais eficaz;
- O uso de ataques aéreos e artilharia isolados, ao invés do combate em terra, nem sempre funcionou, mas pode ter salvado a vida de alguns soldados;
- Movimentos lentos e mais cuidadosos substituíram uma tentativa aleatória e perigosa de avançar imediatamente para o centro da cidade;
- As forças se aproximaram para provocar uma reação e, em seguida, retraíram para fora de alcance;
- Os poucos franco-atiradores treinados da Rússia foram criteriosamente empregados;
- Poder de fogo em massa foi usado ao invés de homens. Isso limitou as baixas militares, mas com custo em infraestrutura e não-combatentes;
- Grupos de assalto, maior autoridade para oficiais subalternos e unidades menores aumentaram a eficácia e a capacidade de sobrevivência;
- O aumento do emprego de unidades especializadas, limitando as tropas de infantaria motorizada majoritariamente conscritas melhorou a eficácia e diminuiu o número de baixas e fratricidas.
Grozny II: erros russos
O principal erro que os militares russos cometeram entre as guerras foi extrair a lição errada do combate urbano: não apenas que deveria ser evitado, mas que poderia ser evitado, sob quaisquer circunstâncias. Portanto, eles não estavam preparados. Além disso, muitas falhas estruturais e organizacionais da primeira guerra permaneceram.
Falha na preparação para o combate urbano
- Os russos esperavam que a artilharia e os ataques aéreos levassem a uma vitória decisiva e não tinham planos de contingência;
- Os soldados russos não foram treinados para o combate urbano e mais uma vez tiveram que aprender em tempo real.
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Deterioração e falhas organizacionais
- A coordenação de forças, embora aprimorada, falhou com frequência, levando a problemas e acusações, principalmente entre as forças do Ministério da Defesa, do MVD e forças leais da Chechênia;
- As tropas de infantaria motorizada ainda estavam mal treinadas;
- O equipamento, principalmente aeronaves, era antigo e havia falta de peças de reposição;
- A maioria das forças russas não conseguia combater efetivamente à noite.
Vantagens chechenas
Obviamente, as falhas russas foram exacerbadas pelas vantagens chechenas. Estes estavam amplamente habituados ao combate urbano (e não urbano) nas duas guerras. Há poucas razões para mudar uma abordagem eficaz.
- Os chechenos conheciam suas cidades e se prepararam para defendê-las;
- Muitos rebeldes serviram nos exércitos soviético e russo. Fizeram bom uso das lições soviéticas de MOUT (Military Operations in Urban Terrain, Operações Militares em Terreno Urbano) derivadas da experiência da Segunda Guerra Mundial;
- Os rebeldes foram capazes de maximizar as vantagens que advêm da defesa em terreno urbano;
- Os princípios de organização de pequenas unidades da Chechênia eram ideais para terrenos urbanos;
- Táticas de “abraçar” ao invés de flanquear tornaram mais fácil explorar as fraquezas russas;
- Os franco-atiradores foram bem empregados;
- Uma campanha de mídia profissional manipulou efetivamente a opinião pública global em 1994-1996 (mas não em 1999-2000);
- Seu objetivo em combate era menos ganhar território do que tornar a permanência na Chechênia insuportável para o oponente.
A experiência russa com o combate urbano na Chechênia é importante por dois motivos. Primeiro, as guerras da Chechênia e seu componente urbano oferecem uma oportunidade única de estudar as forças militares da Rússia. A experiência de combate russa pode dizer muito ao observador sobre as suas capacidades, táticas e aptidão em aprender com a experiência. O foco no combate urbano não impede uma compreensão mais ampla do planejamento e implementação militar dos russos. Em vez disso, concentra a análise em uma missão específica de interesse, ao mesmo tempo em que obtém uma série de lições de aplicação mais ampla.
Segundo, a experiência russa fornece insights sobre a mecânica do combate urbano. Num mundo cada vez mais urbanizado, é provável que soldados lutarão repetidamente em cidades, vilas e aldeias, onde é difícil distinguir combatentes de não combatentes. Assim, outros militares podem se beneficiar em estudar a experiência russa.
Como os russos aprenderam, evitar o combate urbano, embora preferível, é muitas vezes impossível. Os planejadores devem considerar que uma força residente tem vantagens significativas em relação a um agressor estrangeiro tecnicamente superior. É melhor aprender com as experiências de terceiros do que repetir seus erros; portanto, deve-se aprender com a experiência russa.
*Albert Caballé Marimón possui formação superior em marketing, é fotógrafo profissional e editor do blog Velho General. Já atuou na cobertura de eventos como a Feira LAAD, o Exercício CRUZEX e a Operação Acolhida. É colaborador da revista Tecnologia & Defesa e do Canal Arte da Guerra, onde, entre outras atividades, mantém uma resenha semanal de filmes e documentários militares. Entre suas atividades, já proferiu palestras para os cadetes da Academia da Força Aérea. Pode ser contatado através do e-mail caballe@gmail.com.
Bom dia! ótimo trabalho ALBERT, uma contribuição imensurável para aqueles que são apreciadores da área militar e policial. é de fundamental importância um Blog como esse, esclarecedor, informativo, e Educacional PARABÉNS.
Cássio, muito obrigado pelo feedback, nos anima muito! Forte abraço!
Excelente artigo, Albert ! Meus parabéns, acompanho sempre o blog do velho general e o canal arte da guerra, que são parceiros.
Grato pelo feedback, Érico! E muito obrigado por nos acompanhar. Forte abraço!
Não é à toa Putin estar onde chegou. As FA russas colapsaram com a queda da URSS.
E guerra urbana é complicada na sua essência.
Muito obrigado Paul! Vou repassar também ao Cmd Farinazzo. Realmente, as forças armadas russas passaram maus bocados com a queda da URSS. Grato por comentar, forte abraço!
Sempre surpreendendo… Parabéns!
Muito obrigado, José! Um abraço!
Resumo brilhante esclarecedor que espande os horizontes encimando como as coisas funcionam.
Ponto de força e fraqueza para explorar e nescessidade de treinamento e adestramento das forças.
Parabéns senhores.
Grato pelo feedback Charles, e obrigado por nos acompanhar. Forte abraço!
Errata
… Ensinando…
Minha filha se chama Olga.
É de interesse lembrar que a primeira guerra da chechenia era uma guerra não popular em 94 e que os russos se pudesse não lutariam, mas apesar de tudo isso contra, mesmo perdendo 30% de sua força, fizeram o inimigo sofrer pesadas baixas.
Com o estado russo firme nos anos 2000, Putin colocou os separatistas sob o poder de moscou, porque o estado russo queria e convenceu a sociedade a isto. O estado é mau, mas um estado mulçumano extermista (apoiado pelo ocidente) seria muito pior, o estado russo fez o certo, apesar de civis não terem nada haver com as hostilidades, se moscou não agisse poderia haver mais instabilidade na região.
Eu particularmente acho triste esse conflito, por que como sempre ( e quem mais sofreu nesse caso os jovens e os civis. Sejam os jovens reservistas que queriam seguir suas vidas, ou os civis que pereceram pela vontade de meia dúzia de políticos covardes).
Sua filha tem um belo nome! Realmente, a guerra sempre acaba se traduzindo em sofrimento, infelizmente. Muitos criticam Putin e ele pode ter sua própria agenda, mas nem sempre suas decisões são incorretas. Grato por comentar, forte abraço!
É curioso sabermos que tivemos uma experiência nacional semelhante, de tentativa de invasão de uma cidade dominada por um Exército Revolucionário, por uma tropa muito maior e mais equipada, sendo o resultado bem parecido com o que vemos no texto. Estou me referindo ao sítio que ocorreu na cidade de São Paulo em 1924, evento que carece (e muito) de estudos militares para entendermos como um exército heterogêneo como aquele conseguiu evitar que uma cidade, que à época já contava com milhares de habitantes, fosse tomada pelo Exército Brasileiro, inclusive sendo massivamente bombardeada (tanto por canhões, como por aviões) e não caindo sob o domínio das forças legalistas.
Bem lembrado! Aliás é uma excelente sugestão para um futuro artigo, vai entrar na pauta. Obrigado por comentar, forte abraço!