A ascenção da China, a hegemonia norte-americana e a Armadilha de Tucídides

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Imagem: Mike Blake/Damir Sagolj (Reuters) / Alessandro0770 (Shutterstock) / Zak Bickel (The Atlantic).

A impressionante velocidade do crescimento da China e sua expansão nos campos econômico, tecnológico e militar levam inevitavelmente a um choque com os interesses dos Estados Unidos, a potência – até então – hegemônica. Com o acirramento das tensões devido à forte competição, conseguirão estes países evitar a Armadilha de Tucídides?


“A ascensão de Atenas e o temor instilado em Esparta tornaram a guerra inevitável.”
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso.

A impressionante ascensão econômica ocorrida na China, especialmente nas três últimas décadas, causou um desequilíbrio no poder global com uma rapidez sem precedentes na história. Em um piscar de olhos, os ocidentais, e em particular os norte-americanos, foram apresentados a uma nova realidade: os Estados Unidos da América não estavam mais isolados na posição de potência hegemônica no concerto das nações. A China, agora, tornara-se um desafiante capaz de ameaçar a liderança dos norte-americanos, primeiro economicamente e, em seguida, em se mantendo o ritmo atual, militarmente.

Embora a velocidade dos acontecimentos que envolvem a atual competição entre China e EUA seja inédita, a dinâmica de uma potência em ascensão desafiar uma potência dominante não é. Isso já aconteceu muitas vezes na história. Quando ocorreu pela primeira vez, essa disputa culminou em uma guerra cujo desenrolar ficou registrado para a posteridade na magistral obra de Tucídides.


FIGURA 01: Estátua de Tucídides em frente ao Parlamento de Viena, na Áustria (Imagem: Ichi.pro).

O ateniense Tucídides foi um importante historiador da Grécia antiga, autor de História da Guerra do Peloponeso[1]. Nascido entre os anos de 460 e 455 a.C, relatou os acontecimentos da guerra entre Esparta e Atenas como testemunha da história, de forma objetiva e imparcial. Como um analista crítico, ao relatar objetivamente os acontecimentos, buscou interpretar suas motivações e esclarecer as circunstâncias nas quais os fatos narrados estavam inseridos. Além desses aspectos políticos, como conhecedor da arte da guerra praticada à época, tinha capacidade técnica para descrever com precisão as operações militares tal como elas ocorriam.

A Guerra do Peloponeso durou 27 anos (de 431 a 404 a.C.) e envolveu todo o mundo helênico. Tucídides não conseguiu contar a história completa, em razão de sua morte, que interrompeu seu relato no ano de 410. Entretanto, a obra, em oito livros, foi mais do que suficiente para deixar “um patrimônio sempre útil”, intenção expressa pelo autor, uma vez que, “sendo a natureza humana imutável, se determinadas circunstâncias se reproduzirem em épocas diferentes, os fatos se repetirão de maneira idêntica ou semelhante”.

E foram as repetições das circunstâncias nas quais uma potência em ascensão desafiou uma potência dominante ao longo da história que levaram o professor Graham Allison, diretor do Belfer Center for Science and International Affairs, da Universidade de Harvard, a cunhar a expressão “Armadilha de Tucídides”. Ela apareceu pela primeira vez em 2015, em um artigo na revista The Atlantic: The Thucydides Trap: Are the US and China headed for war? [2]

No artigo, Allison analisa dezesseis situações em que um poder nacional emergente desafiou um poder estabelecido ao longo dos últimos 500 anos, e conclui que, em doze delas, o resultado foi a guerra.


FIGURA 02: Potências emergentes desafiando potências hegemônicas nos últimos 500 anos.

O questionamento que motiva os estudos do autor e de sua equipe é o de saber se a atual geração será capaz de evitar a guerra, escapando da sina demonstrada pela esmagadora maioria das vezes em que as circunstâncias que envolvem a atual ascensão chinesa se repetiram ao longo da história.

Mais do que isso, o estudo de Allison fornece as lentes adequadas, ou seja, uma perspectiva histórica e geopolítica para se analisar a atual confrontação entre China e Estados Unidos, entendendo-a de forma mais ampla do que uma simples competição econômica ou militar.

Em 2017, as ideias apresentadas no artigo foram expandidas no livro A Caminho da Guerra: Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides?, editado no Brasil pela Editora Intrínseca, com tradução de Cássio de Arantes Leite. Neste estudo, com a profundidade que um livro permite, o autor se debruça mais amiúde sobre as circunstâncias que levaram à guerra nos conflitos apresentados em seu artigo de 2015. Discorre sobre as dúvidas, temores e pressões que assaltavam os líderes daqueles momentos, suas opções estratégicas e suas motivações finais. Para o leitor de hoje, sabedor dos resultados de cada uma daquelas decisões, é muito interessante comprovar que, como Tucídides constatou, a imutabilidade da natureza humana leva homens de diferentes épocas e culturas a tomar decisões semelhantes, por motivações similares, arrastando seus povos à guerra.

Mas voltemos à disputa atualmente em curso. A ascensão chinesa não é simplesmente econômica. Especialmente sob a presidência de Xi Jinping, o atual líder chinês, ela representa também uma aspiração de readquirir a supremacia perdida, um sonho de “tornar a China grande outra vez”[3].


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A Caminho da Guerra: Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides?

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Esse desejo está fortemente baseado no modo de pensar chinês, na crença arraigada de que a China constituiu uma civilização perene com destino manifesto à grandeza e à liderança, condições que sempre existiram ao longo dos seus quatro mil anos de história e que, por um acidente conjuntural, deixaram de ser realidade somente a partir do século XIX.

Henry Kissinger abre seu livro Sobre a China tratando dessa perspectiva singular: “Uma característica especial da civilização chinesa é a de que ela parece não ter um início. Perante a história, ela assoma mais como um fenômeno natural permanente do que como um Estado-nação convencional.”

É nesse contexto que Xi Jinping propõe construir uma nação com “uma sociedade modestamente confortável e a transformação da China em um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, civilizado e harmonioso – e concretizar o sonho chinês de grande revitalização da nação chinesa”[4].

Graham Allison traduz essa intenção da seguinte forma: a China deseja ter o papel predominante na Ásia, aquele que tinha antes da intromissão ocidental do século XIX. Deseja restabelecer o pleno controle dos territórios que julga serem seus, como Taiwan e Hong Kong, e não admite movimentos que considera separatistas, em Xinjiang e no Tibete. Almeja recuperar sua esfera de influência histórica ao longo das fronteiras e mares adjacentes e obter o respeito de outras grandes potências nos principais fóruns e nas discussões dos temas mundiais.


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É claro que, no caminho para alcançar esses objetivos, os chineses esbarrariam nos interesses de outros povos e outras nações. O restabelecimento da soberania plena sobre Taiwan e Hong Kong contraria os interesses de grande parte dos cidadãos daqueles locais, acostumados ao seu modo de vida, no qual desfrutam de liberdades democráticas inexistentes no sistema político chinês. O mesmo tipo de consideração, com uma maior ênfase nas liberdades religiosas, pode ser feito em relação aos uigures, uma minoria étnica majoritariamente islâmica que habita a distante província chinesa de Xinjiang, na Ásia Central, e dos tibetanos budistas, na fronteira com a Índia.

O controle dos mares adjacentes à China esbarra nos interesses japoneses e dos países do sudeste asiático, além dos insulares do Pacífico Ocidental, na disputa pelo controle de recursos energéticos, áreas pesqueiras e rotas comerciais.

E todos esses possíveis pontos de atrito de alguma forma impactam os interesses norte-americanos na região. Os EUA estão comprometidos com a manutenção do regime taiwanês, política prevista em lei específica[5], promulgada em 1979, e defendem sem vacilações seus interesses na região. O país mantém contingentes militares na Coreia do Sul, Japão, Guam, Filipinas, Singapura e Austrália, além de manter uma frota voltada especificamente para operações no Oceano Pacífico, dentre elas as chamadas “Operações de liberdade de navegação”, quando seus navios de guerra transitam pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do Sul da China, para grande irritação dos chineses.

Mas, além das questões que envolvem a China e terceiros países, nas quais os EUA podem acabar envolvidos, há também a disputa direta entre chineses e norte-americanos. Um bom exemplo é o do comércio internacional. No início da década de 1980, os EUA eram o principal parceiro comercial da maior parte dos países. Atualmente, essa situação se inverteu completamente, em favor da China. As Figuras 3 e 4 abaixo ilustram essa mudança, entre 1981 e 2018, e o atual domínio chinês em termos de comércio exterior.


FIGURA 03: Comércio global em 1981 (Fonte: cálculos do Lowy Institute, banco de dados da Diretoria de Estatísticas de Comércio do FMI).

FIGURA 04: Comércio global em 2018 (Fonte: cálculos do Lowy Institute, banco de dados da Diretoria de Estatísticas de Comércio do FMI).

Entretanto, a principal disputa entre os dois países, que tende a se acirrar nos próximos anos, será pela supremacia tecnológica. Campos como o da Inteligência Artificial, Internet das Coisas, robótica, Blockchain e Internet de 5ª Geração são alguns exemplos. E por serem todas tecnologias com potencial disruptivo, que conferem aos seus detentores grande vantagem competitiva, são potencialmente geradoras de imensos conflitos de interesses, que podem evoluir para crises internacionais.

Após todos esses aspectos terem sido levantados, voltemos à pergunta feita no início deste texto: o caminho para a guerra é inevitável? Estariam EUA e China destinados pela Armadilha de Tucídides a um confronto que traria terríveis consequências, não só para os dois países como também para todo o restante da comunidade internacional?

Um primeiro aspecto a se considerar é o grau inédito de interligação econômica existente entre as duas economias. Os EUA e a China possuem um fluxo comercial de aproximadamente US$ 2 bilhões ao dia. Apenas como comparação, esse era o volume do comércio entre EUA e URSS, durante a guerra fria, ao ano. Suas cadeias de produção estão interligadas. Milhares de empresas norte-americanas produzem na China e miram seu mercado consumidor. O maior mercado consumidor da Apple fora dos EUA é a China, país onde a gigante da tecnologia concentra 95% de sua produção. A rede de cafeterias Starbucks possui na China seu maior mercado fora dos EUA, onde chegou a inaugurar uma nova loja a cada 15 horas. A General Motors, junto com suas afiliadas locais, vende mais carros na China do que nos EUA.

Tal grau de interdependência econômica, apesar de aumentar muito o custo de uma guerra, o que diminui sua possibilidade, por si só não impede a guerra, como comprovam vários casos do passado, em especial a Primeira Guerra Mundial. É oportuno relembrar que nas décadas que antecederam a grande guerra, as economias do Reino Unido e da Alemanha ficaram tão intimamente entrelaçadas que um lado não podia infligir dificuldades econômicas ao outro sem sofrer prejuízos.


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Outro aspecto fundamental a ser considerado é a possibilidade de destruição mútua assegurada. EUA e China possuem arsenais nucleares tão substanciais e sofisticados que uma guerra total entre os dois países não seria uma opção justificável. Esta afirmação, que serviu de base para a lógica da paz armada, que vigorou na Guerra Fria, está profundamente inserida na mentalidade de segurança dos países ocidentais. Mas será que também estaria entre os estrategistas chineses? Não custa lembrar a afirmação de Mao Zedong, da década de 1960, de que não temia uma guerra nuclear porque, ainda que perdesse 300 milhões de vidas, a China ainda sobreviveria.

Os aspectos acima mencionados são apenas alguns dos mais evidentes, dentre uma miríade de outros que poderiam ser levantados utilizando-se as lentes fornecidas por Tucídides. Eles alertam que o risco de uma guerra entre EUA e China pode ser maior do que gostam de admitir a maior parte dos analistas.

Mas, apesar de tudo, Graham Allison não considera a guerra inevitável. Ele acredita que a paz pode ser mantida, mas isso exigirá esforço de ambas as partes. Acomodação, negociação, estratégia de longo prazo, definição correta dos interesses vitais de ambas as nações, priorização dos desafios internos, todas essas são estratégias que devem nortear o comportamento das lideranças de ambos os países na busca de se evitar a repetição do flagelo da guerra, que acometeu tantas nações que enfrentaram o Desafio de Tucídides ao longo da história.

Caso tenham sucesso, terão honrado o legado do autor de História da Guerra do Peloponeso:

“Se minha história for considerada útil por aqueles que desejam um conhecimento exato do passado como ajuda para compreender o futuro – que no curso dos acontecimentos humanos, deve se assemelhar a ele, quando não o refletir – dar-me-ei por satisfeito.”
Tucídides

Notas

[1] Neste ponto, faço um chamado aos profissionais da guerra, especialmente aos mais jovens. Se ainda não leram a História da Guerra do Peloponeso, não percam mais tempo e leiam. É um exercício fundamental ao militar profissional. A obra está disponível em: http://funag.gov.br/biblioteca/download/0041-historia_da_guerra_do_peloponeso.pdf.

[2] GRAHAM, Allison. The Thucydides Trap: Are the U.S. and China Headed for War? The Atlantic, 24 de setembro de 2015. Disponível em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/united-states-china-war-thucydides-trap/406756/.

[3] Aqui há uma brincadeira com o lema do ex-presidente Donald Trump, que prometeu, eu sua campanha presidencial “to make America great again”. Como veremos, a intenção de Xi Jinping é rigorosamente a mesma.

[4] Discurso de posse de Xi Jinping, na 1ª Sessão da 12ª Assembleia Popular Nacional, em 17 de março de 2013. In Governança da China, de Xi Jinping.

[5] Disponível em: https://www.ait.org.tw/our-relationship/policy-history/key-u-s-foreign-policy-documents-region/taiwan-relations-act/.

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4 comentários

  1. Qual será o papel do Brasil?
    O de uma Polônia dividida entre Alemanha Nazista e União Soviética Comunista ou de um Portugal de 1808 se posicionado em face da França Napoleônico e sua aliada Rússia e a Inglaterra que um ano antes bombardeou a neutra Dinamarca e integrava fazer o mesmo com Portugal. Nações poderosas estas três que hoje são três dos cinco membros permanentes da ONU.

  2. Maravilhoso artigo. Objetivo com uma psicolinguagem que atende ao leigo, neófita, como eu e até os mestres da Arte e História da Guerra. com respeito,
    parabéns

    1

  3. Muito bom o artigo.

    Eu ainda não estou convencido de que a China se tornará a potência econômica hegemônica.

    O modelo econômico chinês possui limitações. É um povo trabalhador, que deu um salto em termos de qualificação da mão de obra, possui uma alta taxa de poupança interna.

    Mas a centralização econômica excessiva, o direcionamento político dos investimentos e baixo nível de liberdade econômica podem causar sérios problemas para a economia chinesa no médio/longo prazo e levar a economia chinesa a japanificar.
    A mesma China do 5g, constrói cidades fantasmas e infraestrutura “faraônicas” de retorno econômico duvidoso.
    Não sei até quando a alta taxa de poupança dos chineses sustentaram tantos investimentos, muitos sem nenhuma lógica econômica.

  4. Excelente artigo.

    A conclusão que se chega é que uma guerra entre as maiores potências mundiais, é inevitável!!!

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