O avanço geopolítico da Rússia de Vladimir Putin

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O presidente russo, Vladimir Putin, observa um mapa em sua residência em Novo-Ogaryevo, nos arredores de Moscou, em 11 de agosto de 2006 (Foto: Dmitry Astakhov/AFP/Getty Images).

Com o fim da URSS e a queda do Pacto de Varsóvia, no início dos anos 1990, a Rússia perdeu os “estados-tampão” que lhe traziam segurança; Vladimir Putin, em discurso proferido em 2005, afirmou que essa foi a maior catástrofe geopolítica da história da Rússia. Desde o início de suas gestões –como primeiro-ministro e como presidente –, ele vem trabalhando para restabelecer os “amortecedores estratégicos” perdidos.


Quando assumiu pela primeira vez o cargo de primeiro-ministro, em 1999, Vladimir Putin já lidava com um país mergulhado em uma complexa crise. A economia encontrava-se em severas dificuldades, a política totalmente dividida e polarizada e as tensões sociais aqueciam em fogo lento, porém constante. A vertiginosa queda da União Soviética, em 1991, deixou de herança complicados problemas para a Rússia e seu povo, como o separatismo checheno e sua ameaça terrorista, a situação da Igreja Ortodoxa que começava a se recuperar das restrições impostas pelo regime soviético, a homofobia dos russos que criava embaraços na imagem internacional do país, a atuação política dos magnatas oligárquicos e a infiltração de movimentos progressistas, notadamente o ativismo feminista, que rendeu muitas manchetes acerca do país e sobre o próprio Putin.

E, claro, na área geopolítica, a Rússia encontrava-se em uma posição muito delicada. Isolada, com a maioria de suas antigas alianças bruscamente rompidas, a Rússia assistiu impotente ao rápido avanço da OTAN em direção a suas fronteiras por toda uma década. Durante as negociações do final da Guerra Fria, foi firmado o que é conhecido na diplomacia como um acordo entre cavalheiros: Reagan e Gorbachev concordaram que a OTAN não se expandiria para o leste europeu, ou seja, não incorporaria as antigas Repúblicas Soviéticas da região em sua aliança. Aqueles países recém-independentes permaneceriam como estados-tampão, posicionados entre os membros da aliança e o território russo. Nesta situação, entretanto, o cavalheirismo fracassou. Antes do fim do século, antigos estados membros do Pacto de Varsóvia iniciaram suas adesões ao bloco militar que, poucos anos antes, era seu declarado arqui-inimigo capitalista, com os países bálticos, grudados na fronteira russa, aderindo em 2004.

A presença da aliança militar mais poderosa do planeta na fronteira de qualquer país, por si só, já é algo mais do que digno de atenção, mas é um gravíssimo problema se este país possuir um longo histórico de tensão nuclear com a tal aliança. Os problemas que Vladimir Putin, ex-agente da KGB, tomou como suas responsabilidades em 1999 eram grandiosos, mas o tratamento que ele tem dispensado a eles desde então, é igualmente impressionante.

Inicialmente, era necessário pacificar as diversas questões internas que borbulhavam. Os separatistas chechenos, radicalizados pela derrota na sangrenta guerra de 1994, continuavam gerando instabilidade na região do Cáucaso, inclusive com táticas terroristas. Quando os guerrilheiros se envolveram num confronto com as forças de segurança do Daguestão, o recém-nomeado primeiro-ministro aproveitou a oportunidade para, enquanto reprimia energicamente os rebeldes chechenos, angariar a confiança do povo russo e reacender seu nacionalismo, tão fragilizado pela turbulenta e humilhante década que finalmente se encerrava.

O novo milênio teve início com o primeiro mandato de Putin à presidência, eleito no primeiro turno. O presidente passou a reestruturar o sistema administrativo do país e a pacificar as questões políticas e econômicas que, numa nação recém-saída de um modelo socialista, mesclavam-se de maneira perigosa. Magnatas de diferentes ramos utilizavam seu poder econômico para propulsar suas aspirações políticas pessoais, cenário que se tornava mais complexo pela ideologia comunista ainda latente na política russa. Putin enfrentou a questão submetendo as oligarquias através de estatizações e processos, enquanto, simultaneamente, oferecia a possibilidade de consolidarem seus negócios dentro da federação, desde que cooperassem. Como resultado, os oligarcas se submeteram e alinharam-se ao governo, dando à Rússia, além da estabilidade política, um novo fôlego econômico. Tais ações podem ser interpretadas como um relativo avanço rumo ao capitalismo, tendo o governo numa posição moderada, mediando os interesses dos políticos comunistas e dos liberais.

Apesar das críticas da comunidade internacional e das ações de diversos opositores, a popularidade de Vladimir Putin apenas aumentava. Ele foi reeleito em 2004 com 71% dos votos. Uma das mais notórias polêmicas envolvendo o presidente foi a morte de Alexander Litvinenko, seu antigo colega dos serviços de inteligência que desertou para o Reino Unido, acusando Putin de ter firmado acordos com a máfia russa durante o período de estabilização. Litvinenko foi morto em 2006, após tomar um chá envenenado com polônio. Os ingleses acusam o próprio governo russo de ter orquestrado o assassinato, enquanto a investigação russa apontou para um dos principais opositores do regime, Boris Berezovski. De qualquer forma, a dolorosa e pública morte de um desertor do KGB e da FSB, em território estrangeiro, incentivou os opositores de Putin a serem bem mais cuidadosos.

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Após o fim de seu mandato presidencial em 2008, ele reassumiu o cargo de primeiro-ministro, sendo reeleito pela terceira vez como presidente em 2012. Quando tal dinâmica de perpetuação de poder tornou-se evidente naquele ano, os opositores do partido de Putin, o Rússia Unida, não ficaram nada contentes, promovendo uma grande onda de protestos. Entretanto, a base de apoio também se manifestou, com números maiores do que os da oposição, deixando evidente que o presidente mantinha o respaldo do povo. Vale menção à atuação da banda punk feminista “Pussy Riot” na época, que atraiu as atenções da mídia estrangeira e conseguiu bastante apoio no Ocidente. Os russos, entretanto, não foram convencidos.

A atuação de Vladimir Putin no cenário doméstico foi bastante eficiente, tanto que ele continua no poder há 21 anos, mas sua atuação geopolítica também tem se provado muito vantajosa para os interesses russos.

Particularmente na política externa, dois dos principais problemas enfrentados eram a expansão da OTAN e o isolamento geopolítico. A resposta à aliança do Atlântico Norte veio em 2014, na esteira do Euromaidan, a onda de protestos que abalou a Ucrânia e derrubou seu presidente e aliado de Putin, Víktor Yanukóvytch. Putin já percebia uma ligação do novo governo ucraniano com as potências ocidentais, que pareciam dar garantias para que os ucranianos rompessem a histórica aliança com a Rússia e dessem início a negociações para o ingresso de seu país na União Europeia e na OTAN. Tal cenário seria inaceitável para a política externa russa, dada a importância estratégica da fronteira entre ambos os países. Putin, portanto, agiu.

Imediatamente, após a queda de Yanukóvytch, duas regiões deram início ao separatismo. A Crimeia, península de posição estratégica no sul da Ucrânia e na qual localiza-se a base que abriga a Frota do Mar Negro, crucial para o domínio militar russo na região, amanheceu povoada por soldados não identificados, ironicamente apelidados de little green men pela mídia internacional. Aqueles homens guardaram a região enquanto um referendo era rapidamente organizado na península, declarando unilateralmente sua independência da Ucrânia e requisitando sua incorporação junto à Federação Russa, prontamente atendida pela Duma e entrando para a história como o primeiro episódio do território de um país sendo anexado por outro, na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário da Crimeia, as regiões de Donetsk e Lugansk não conseguiram sua separação tão pacificamente. Kiev enviou suas forças armadas à região para combater as novas milícias ali formadas e que organizavam um segundo referendo. Teve início uma guerra civil, com os combatentes locais armados, financiados e treinados por mercenários russos, tornando-os capazes de resistir aos avanços ucranianos. O enorme urso russo estava novamente desperto, firmemente se opondo ao último avanço da OTAN, obrigando-a a rever suas estratégias, pois a incorporação de um país em franco confronto militar à aliança significaria arrastar todos os seus membros para este conflito.

Quanto ao isolamento de seu país, Putin notou a oportunidade de rompê-lo a partir da Síria, que se encontrava afundada numa guerra civil contra o Estado Islâmico, rebeldes curdos e dissidentes de seu próprio exército, com estes últimos dois grupos, recebendo apoio ocidental. O regime dos Assad é um aliado russo de longa data e no momento em que passou a protagonizar a principal crise internacional da época, abriu a brecha para que Putin avançasse com suas ambições geopolíticas. Provendo o regime sírio com um massivo apoio militar, através de suprimentos, armas e até suporte direto da força aérea russa, ele permitiu que Assad retomasse o controle de todas as áreas capturadas pelos rebeldes, deixando apenas os curdos controlando uma porção do norte do país através de suas milícias YPG.

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Foram justamente os curdos que atraíram outra potência para o conflito e para o escopo geopolítico de Putin: a Turquia. Há décadas os turcos lidavam com o PKK, partido curdo responsável por uma longa e sangrenta guerra civil durante a década de 1980 e acusado até mesmo de atividades terroristas pelo regime central. Após a deflagração dos conflitos com o Estado Islâmico, os curdos da Síria e do Iraque emergiram como alguns dos principais vitoriosos, aumentando muito sua influência, riquezas e capacidade militar, gerando preocupação no Presidente turco Recep Tayyp Erdogan.

Sua primeira interação com Putin não foi nada amistosa, quando em 2015, um caça F-16 turco abateu um Su-24 russo na fronteira síria. O incidente gerou revolta na Rússia, com muitos clamando por guerra. Putin, entretanto, inusitadamente, utilizou o ocorrido para aproximar-se de Erdogan, movimento bastante facilitado quando, no ano seguinte, Erdogan sofreu uma tentativa de golpe em seu país, tendo encontrado indícios de apoio ocidental aos golpistas.

O ocorrido gerou uma grande desconfiança no governo turco acerca de seus aliados da OTAN, levando-o a se afastar dos europeus e americanos e cair nas graças do presidente russo. Foram firmados acordos de compras militares pelos turcos, incluindo tecnologia sensível, como o sistema de defesa antiaérea S-400, anúncio que aprofundou muito a crise diplomática com os Estados Unidos, uma vez que a Turquia era membro do programa de desenvolvimento do caça de 5ª geração F-35. Os americanos não poderiam arriscar que informações sigilosas, como a assinatura-radar do seu valioso caça furtivo, chegassem aos russos através do S-400, levando-os a expulsarem os turcos do programa, causando a eles um prejuízo multimilionário. Como consequência, Istambul aproximou-se ainda mais de Moscou, ao iniciar negociações para a aquisição do Su-57, o caça russo de 5ª geração.

A promissora e inusitada parceria entre as duas potências, porém, não durou muito tempo. Quando a situação na Síria se estabilizou e os curdos firmaram-se na fronteira norte daquele país, com a permissão tácita de Damasco, Erdogan cometeu seu maior erro: invadiu o país vizinho, na esperança de afastar os curdos de sua fronteira e criar uma zona-tampão de 30 km entre as YPG e o PKK. O presidente Assad ficou furioso e o mundo voltou-se para Putin, aguardando para descobrir qual dos seus aliados ele apoiaria. Ele escolheu Assad. Como resultado, atualmente é a Turquia quem se encontra isolada, sua relação com a OTAN bastante fragilizada e a nascente parceria com a Rússia abruptamente encerrada. Não será fácil para Erdogan colocar as mãos num caça de 5ª geração agora, mesmo tendo estado tão próximo de adquirir dois deles.

Surpreendentemente, Putin não se contentou em avançar sua zona de influência apenas para o Oriente Médio. Ele continuou, sem demora, para o norte da África. O Egito, após uma longa crise política e um afastamento dos Estado Unidos, encontrou na Rússia uma nova aliada. A parceria entre os dois países rendeu grandes frutos rapidamente, como acordos econômicos, compras de armamento pelos egípcios no valor de 3,5 bilhões de dólares, a construção da primeira usina nuclear egípcia pelos russos e um último, que indica o quanto a aliança é importante para ambos, pois, agora, suas aeronaves militares podem utilizar as bases aéreas um do outro durante suas operações.

A última adição de Putin à zona de influência russa, ainda em seus estágios iniciais, é a Líbia. O antigo domínio de Gaddafi mergulhou no caos da guerra após sua morte, com duas facções se destacando, a Câmara dos Representantes, baseada em Tobruk e o Governo de Salvação Nacional, com sede na capital Trípoli. Este último conta com o apoio das Nações Unidas e da União Europeia, incluída especialmente a Turquia, enquanto o braço armado da Câmara dos Representantes, comandado pelo general Khalifa Haftar é apoiado pelo Egito e outras potências árabes, recebendo este ano um novo aliado de peso: Vladimir Putin. Haftar já tem o controle da maior parte do país e imagens de satélite mostraram que ele recebeu reforços de caças russos, estacionados em suas bases. O futuro parece promissor para o general líbio. Resta saber para onde o presidente da Federação Russa voltará sua atenção a seguir.


*João Víctor Gonçalves Cavalcante da Silva, natural de Catalão, Goiás, sempre teve grande interesse pela vida intelectual e, atualmente, ruma nela. Filho de cabeleireira e neto de doméstica, é o primeiro da família a ingressar no ensino superior como graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Guerra Cultural, tem seus estudos focados na Geopolítica e na Defesa e Segurança.

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11 comentários

  1. Gostem ou não de Putin, ele é um estadista de visão e um líder que não hesita em agir, principalmente nos interesses de sua nação. Regime de força, como os russos bem conhecem, eis o “Tsar” do início do século XXI. Forte abraço!

  2. Parabéns ao autor do artigo, como o coronel Paulo Filho ele realmente estuda e entende o assunto. Eu só gostaria de acrescentar duas coisas. A primeira coisa é que quando putin se refere a sua frase, que o fim da união soviética foi a maior tragédia geopolítica do sec xx, ele se referia ao fato de 25 milhões de russos viverem fora das fronteiras da Rússia. (Isso se encontra no livro war with russia?) Outro ponto que eu sempre destaco, é que putin no início de seu governo, procurou parceria com o mundo ocidental, e como ele se queixa em uma entrevista de 2017. Os parceiros ocidentais encararam esse gesto de confiança como sinal de fraqueza, tratando o país como uma potência de segunda classe ( isso também se encontra no livro war with russia?). Putin está certo em restabelecer a influência de seu país, ou será esmagado e humilhado como em 1996 (expansão da otan) e 1997 (bombardeio da sérvia, histórico aliado russo). O que putin faz não seria nada diferente, de outras lideranças russas, e dentro da perspectiva russa ele é considerado um moderado. E seus superpoderes foram herdados de yeltsin. Para finalizar, tudo que os progressistas ocidentais, fizerem contra a Rússia só vai fortalecer a posição de putin, seus inimigos são seus maiores promotores.

  3. Ótimo artigo, João e Velho General.
    A visão de um estadista deve ter sempre “um olho no peixe e outro no gato”, ou seja deve-se estar sempre atento às adversidades e as oportunidades. Neste caso fica evidente como um país que estava saindo de uma crise complexa (política e econômica) que com a devida atuação conseguiu mitigar os problemas internos e ter condições para buscar novas oportunidades internacionais.
    Abraços

    1. Muito obrigado Paulo! Pode-se gostar ou não de Putin, pode-se concordar ou não com ele, mas uma coisa é certa, ele está fortalecendo seu país e não aceita interferências em sua soberania. Vou repassar seus cumprimentos ao João Víctor. Muito obrigado, forte abraço!

    2. Muito obrigado, Paulo.
      Um bom estadista entende que o sistema internacional, apesar de todos os aparatos de governança como as organizações internacionais, funciona de forma similar ao estado de natureza hobbesiano, uma disputa de todos contra todos e no qual os atores, no caso os Estados-nação, são intrinsecamente egoístas, preocupados em primeiro lugar com sua própria sobrevivência. Sendo assim, só prospera quem mantém um olho no peixe e outro no gato, como você bem afirmou.
      Obrigado e Feliz Natal.

  4. Obrigado pelo comentário! De fato, Putin tem se mostrado um dos estadistas mais eficientes do século XXI, capaz de defender os interesses russos num ambiente sistêmico bastante hostil. Abraços.

  5. Como autor, fico muito grato pelo seu reconhecimento, Rafael, obrigado. Creio que ao falar sobre o fim URSS como tragédia geopolítica, ele se referia a provável consequência de que a liderança de Moscou trazia, para o bem e para o mal, estabilidade para toda a sua zona de influência, incluindo o Leste Europeu, Ásia Central e o Cáucaso. Podemos notar que, por este prisma, ele estava certo, como demonstram os conflitos desde a fragmentação da Iugoslávia, até a recente guerra entre Armênia e Azerbaijão. Não podemos deixar de notar também que muitos desses problemas foram criados, intensificados e/ou explorados pela própria União Soviética, especialmente pela “política do liquidificador” de Stalin.
    Abraço.

  6. Excelente artigo João Victor! Analisou com muita clareza o papel de Vladmir V. Putin na geopolítica desempenhada pela Rússia neste milênio. É uma questão extremamente complexa a ascensão da Rússia pós Yeltsin e você foi muito sucinto. Parabéns pela sua trajetória intelectual, um grande abraço e feliz Ano Novo !!!

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