A busca da Rússia por profundidade estratégica

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Por George Friedman*, no Geopolitical Futures.


O presidente russo, Vladimir Putin (Foto: Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP/Getty Images).

Profundidade estratégica sempre foi fundamental para a Rússia e sua importância está gravada de maneira indelével na memória do país. Nos últimos anos, o presidente russo, Vladimir Putin, vem realizando diversos movimentos estratégicos no sentido de recuperar o “amortecedor” perdido com a queda da URSS.


Em 2005, em um discurso proferido na Assembleia Federal da Rússia, o presidente Vladimir Putin disse que a queda da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica da história da Rússia. O que ele quis dizer é que a fragmentação da União Soviética custaria à Rússia o elemento que lhe permitiu sobreviver a invasões estrangeiras desde o século XVIII: profundidade estratégica.

Para um país europeu derrotar a Rússia de forma decisiva, teria que tomar Moscou. A distância até Moscou é grande e desgastaria qualquer exército em avanço, exigindo que reforços e suprimentos fossem movidos para o front. À medida que avançariam para a Rússia, as forças dos atacantes seriam inevitavelmente enfraquecidas. Hitler e Napoleão chegaram exaustos a Moscou. Ambos foram derrotados pela distância e pelo inverno, e pelo fato de os defensores não estarem no fim de sua linha de abastecimento.

No auge da Guerra Fria, São Petersburgo estava a cerca de 1.600 quilômetros das forças da OTAN e Moscou a cerca de 2.100 quilômetros. Hoje, São Petersburgo fica a cerca de 160 quilômetros de distância e Moscou a cerca de 800 quilômetros. A OTAN não tem interesse nem capacidade para envolver a Rússia. Mas o que Putin entendeu foi que o interesse e a capacidade mudam e que a principal ameaça à Rússia vem do Ocidente.


Reduzindo o “amortecedor” entre a Rússia e os países membros da OTAN (Fonte: OTAN).

Há outra entrada potencial na Rússia pelo sul. O Império Russo usou essa rota como zona-tampão com a Turquia, especialmente durante as numerosas guerras russo-turcas. A Rússia era protegida pelo Cáucaso, uma região montanhosa acidentada que desencorajava qualquer ataque a ponto de a OTAN nunca ter considerado essa opção. Mas se alguém conseguisse forçar o caminho através das montanhas, estaria a cerca de 1.600 quilômetros de Moscou, em terreno plano e aberto com clima muito melhor do que atacantes pelo oeste enfrentariam.

O Cáucaso consiste em duas cadeias de montanhas. O norte é muito mais acidentado. O sul é um pouco menos assustador. O norte do Cáucaso abriga a Chechênia e o Daguestão, ambos com separatistas islâmicos. A Chechênia, no centro da cordilheira do norte, representou um sério desafio para a Rússia, que Putin derrotou no início de sua presidência.

O mais assustador para Putin era que o sul do Cáucaso, consistindo na Armênia, Geórgia e Azerbaijão, havia deixado a Rússia e formado estados independentes. A Rússia manteve uma aliança com a Armênia, a mais fraca dos três, e relações complexas com o Azerbaijão, um próspero produtor de petróleo. A Geórgia, que faz face à cordilheira norte numa frente mais ampla do que os outros, alinhou-se com os Estados Unidos.


Mapa do Cáucaso. Notas:
*Abkhazia e Ossétia do Sul são regiões isoladas da Geórgia agora sob controle de fato da Rússia.
**Nagorno-Karabakh é um território disputado entre a Armênia e o Azerbaijão.

Se os estados do sul do Cáucaso formarem uma coalizão anti-russa e os Estados Unidos, por exemplo, apoiarem um levante no norte do Cáucaso, a barreira pode ser quebrada e um caminho para o norte aberto. Portanto, a Rússia seguiu uma estratégia de impor fortes controles no norte do Cáucaso enquanto se engajava em uma guerra em 2008 com a Geórgia, sua ameaça mais significativa ao sul, com base na geografia e na aliança da Geórgia com os EUA. A guerra demonstrou os limites do poder americano enquanto este estava engajado em guerras no mundo muçulmano. Foi uma estratégia bem-sucedida, exceto pelo fato de que a ameaça de longo prazo vinda do sul não foi eliminada.

A Rússia precisava de uma estratégia no oeste e outra no sul. No oeste, parte dessa estratégia evoluiu na Ucrânia, evitando que fosse uma ameaça sem o uso de grande força russa. Um acordo tácito foi alcançado com Washington: os Estados Unidos não armariam a Ucrânia com armas ofensivas significativas, e a Rússia não moveria uma força importante para a Ucrânia, além das insurgências já existentes. Nem a Rússia nem os EUA queriam guerra. Ambos queriam uma zona-tampão. E isso é o que surgiu.

Outra parte do amortecedor perdido tornou-se, por assim dizer, disponível. A Bielorrússia fica a cerca de 640 quilômetros de Moscou. A Polônia, a oeste, é hostil à Rússia e contém algumas forças americanas. Isso representa uma ameaça significativa para a Rússia, a menos que a Bielorrússia possa ser trazida para o seu rebanho. As eleições na Bielorrússia realizadas este ano criaram uma oportunidade. O presidente Alexander Lukashenko, governante de longa data e em muitos aspectos o último Brezhnevita[1], enfrentou séria oposição. Os russos apoiaram Lukashenko e basicamente preservaram sua posição. Em troca, Lukashenko não tem acesso a qualquer acomodação com o Ocidente que a Rússia desaprove e também deve acomodar os requerimentos militares russos. O Báltico ainda é uma ameaça, mas seu terreno torna difícil um ataque em grande escala para o leste. Os poloneses e americanos estão impedidos de aumentar o poder para o leste, a menos que iniciem um conflito, coisa que não farão. Se o regime de Lukashenko sobreviver, isso representará uma grande melhoria na fronteira ocidental da Rússia.



No sul, temos uma situação mais complicada. O Azerbaijão e a Armênia há muito lutam, em vários níveis de intensidade, pelo Nagorno-Karabakh. Recentemente, o Azerbaijão, com apoio da Turquia, optou por lançar um grande ataque ao Nagorno-Karabakh. O Azerbaijão evitou um conflito em grande escala ali por 20 anos (a Guerra dos Quatro Dias em 2016 não constitui um conflito em grande escala). Suas razões para lançar o ataque agora são obscuras. O desejo da Turquia por um conflito bem-sucedido provavelmente deriva de problemas econômicos, juntamente com reversões em sua política mediterrânea e sua incapacidade de impor sua vontade na Síria. Precisava de uma vitória em algum lugar, e fazia sentido ajudar seu aliado na tomada de Nagorno-Karabakh.

Entretanto, o assunto é mais complexo. Os russos são aliados da Armênia e não deviam querer que seu aliado fosse derrotado. Além disso, a Rússia não gostaria que a Turquia fosse uma força significativa no Cáucaso. Sem dúvida, sabia dos planos do Azerbaijão porque sua inteligência teria detectado movimentos do país e porque o Azerbaijão não podia se dar ao luxo de alienar seu vizinho do norte. Portanto, a ideia de que os russos desconheciam o plano de guerra beira o impossível. A Rússia deve ter aceitado tacitamente os planos do Azerbaijão.

A razão de tudo isso ter sido possível é que, no final, foi a Rússia que ajudou a negociar o fim da guerra e, muito mais importante, concordou em enviar quase 2.000 soldados como peacekeepers a Nagorno-Karabakh por pelo menos cinco anos. Dois mil russos nesta região representam uma força decisiva. Ninguém vai engajá-los. Isso significa que seu aliado, a Armênia, agora tem tropas russas a leste e o Azerbaijão tem forças russas ao norte e a oeste. A Geórgia agora enfrenta uma situação semelhante. Com efeito, a Rússia fez um movimento significativo para recuperar, ou pelo menos ter um elemento importante de controle no sul do Cáucaso. A presença de uma grande força russa, com direito de permanecer lá por um longo tempo, elimina o que havia sido uma ameaça potencial de longo prazo. A presença de tropas dos EUA na Geórgia pode ser um problema, mas dada a falta de intenções ofensivas de Washington, é improvável que estejam dispostos a investir forças importantes na região. E uma pequena presença de treinadores dos EUA na Geórgia é algo com que a Rússia pode conviver.

Além da Armênia, o grande perdedor é a Turquia, que foi excluída da força de paz, viu o Azerbaijão, um importante aliado na região, acomodar a Rússia e aceitar seu bloqueio às ambições turcas em um momento em que a Turquia precisava muito de uma vitória. Além disso, esse caso – acidental ou deliberadamente – coincidiu com a transição presidencial americana, época em que a tomada de decisões nos EUA é geralmente mais complexa, e desta vez quase impossível. É difícil não pensar que os russos tiraram proveito dos acontecimentos ou que até mesmo os arquitetaram. Em qualquer caso, seus aparentes sucessos na Bielorrússia e agora no sul do Cáucaso são passos importantes na promessa de Putin de reverter as consequências estratégicas da queda da União Soviética sem forjar uma única nação.

A profundidade estratégica é vital a longo prazo e sua importância está gravada na memória da Rússia. Mas agora tem um significado mínimo. Os EUA e a OTAN não têm interesse em invadir a Rússia. Embora a Rússia deva presumir o pior, seu problema imediato continua sendo a economia e a dependência das exportações de energia como principal fonte de receita, sem qualquer controle sobre os preços. A Rússia executou um golpe estratégico, mas continua enfrentando as tensões financeiras e políticas internas nas quais esta análise se baseia. Não resolveu seus problemas centrais por meio de manobras estratégicas, por mais úteis que fossem. Sem uma transformação da economia, continua em crise.


[1] Apoiador de Leonid Brezhnev, Secretário-geral do PC da URSS de 1964 a 1982.


*George Friedman é analista geopolítico e estrategista de assuntos internacionais mundialmente reconhecido. É fundador e presidente da Geopolitical Futures, um think tank especializado em relações internacionais e política externa americana. É autor de diversas obras, dentre as quais os best-sellers “Os próximos 100 anos” e “A próxima década”.

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21 comentários

  1. Bom artigo, mas omitiu-se completamente a retomada da Criméia, uma medida ousada de Putin que foi crucial para a defesa russa no Mar Negro e os conflitos na Ucrânia, com a presença de significativa minoria étnica russa, apoiada militarmente por Putin, que dificulta que o país adira à OTAN e à União Europeia.

    1. Olá Eduardo, bom dia! Concordo que a questão da Criméia poderia ter sido melhor explorada, mas ficou implícita no parágrafo que menciona a Ucrânia. Muito obrigado pelo comentário, forte abraço!

      1. Como fica a situaçao das repúblicas independentes que integram a Federaçao Russa, de maioria islâmica. Não seriam uma serie ameaça em uma guerra? E os conflitos com a China, os chineses parece que exigem territórios russos, verdade?

    1. Quanta ironia do destino, a Geórgia, berço da família Bagration que reinava na própria e morava em Moscou, terra natal de Stalin, Béria e outros georgianos que se destacaram na Rússia soviética hoje tem presença de observadores militares americanos

  2. Ótimo artigo Albert!
    Neste artigo fica muito claro como um líder com uma visão estratégica amplificada e desenvolvida mitiga ou resolve ameaças à soberania de seu país. Como em um tabuleiro de Xadrez ele vai movendo as peças e induzindo seus adversários para fazerem movimentos que levam ao seu objetivo final.
    Abraços!

  3. Olá, sou novo leitor desse blog. Pois bem, gostaria de saber qual a avaliação que o senhor faz sobre a obra de autores de Relações Internacionais da tradição realista.

    Desde já, agradeço a atenção.

    1. Gabriel, eu sou pragmático e acredito que países devem perseguir seus objetivos e defender sua soberania. No entanto, não sou teórico e nem me prendo a conceitos absolutos. As postagens do Velho General seguem esta mesma linha. Obrigado por comentar, seja bem vindo, forte abraço!

  4. Não concordo com o autor, ao dar ênfase que a otan liderada pelos eua não deseja enfraquecer a Rússia e em ultima análise entrar em conflito com ela. Se assim fosse bastava o cumprir a promessa que bush pai fez a gobarchev que a aliança em troca de uma alemanha unida não avançaria um palmo a leste. Ou dizer para a Geórgia e a Ucrânia que a porta esta sempre aberta. Ao invés desde 1996 e sob uma gestão demoniocrata (Clinton) a aliança saiu da Alemanha até as fronteiras da Rússia e hoje São Petersburgo está ao alcance da artilharia da otan. A guerra em 2008 contra a Geórgia (que atacou tropas de paz russas na ossetia do sul. Que foram convidadas pelo governo georgiano em 1994). A guerra civil que a Ucrânia vive, até uma possível piora da situação na Bielorrússia quando o biden entrar se deve a expansão da otan. Por isso diferente do Brasil o kremlin e suas elites não alimenta ilusões sobre o ocidente e faz o certo depois de ter sido tratada como uma nação de segunda classe e repetidamente humilhada quando esta tentou ser parte do ocidente.
    Quanto a situação econômica da Rússia, apesar das dificuldades ela vem subindo no ranking de liberdade economica (posição 94). E embora muito se diga sobre aa dificuldades da Rússia a situação dos eua não é das melhores, principalmente quando a consequências das politicas dos eua virem a tona, quando o dolar colapsar o que pode estar muito próximo (comprem bitcoin).
    Vamos torcer para biden não dar continuidade as políticas de obama contra a Rússia ou a situação pode não ter volta.

  5. Uma boa analise sem duvida .

    Em nosso Brasil falta um estrategista militar como Putin, a exemplo estamos com as Falklands e Guiana Francesa como vizinhos, com os europeus e agora os EUA dando indireta sobre a Amazônia, nossos militares deveriam se aproximar mais de Israel, Rússia, Índia e Turquia em parcerias no desenvolvimento de tecnologia militar e aquisições.
    É uma péssima ideia confiar cegamente em fornecedores ocidentais .

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