O HMS Queen Elizabeth e as aspirações britânicas

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O porta-aviões HMS Queen Elizabeth operando com aeronaves F-35 pela primeira vez, em outubro de 2019 (Foto: US Navy/Mass Communication Specialist 3rd Class Nathan T. Beard).

A Grã-Bretanha anunciou que vai enviar seu novo porta-aviões, o HMS Queen Elizabeth, a um longo desdobramento no Pacífico em 2021, após o término da fase de testes. O navio participará de exercícios militares com aliados. Esta é uma decisão que pode revelar um pouco das pretensões britânicas pós-Brexit no campo geopolítico.


Construir um porta-aviões não o torna automaticamente operacional. O navio deve ser equipado com aeronaves e tripulações treinadas; o abastecimento de uma embarcação desse tipo é uma operação complexa, pois ele consome grandes porções de suprimentos e exige a companhia de embarcações logísticas com grandes quantidades de todo o tipo de insumos, desde combustível até munição, passando pela alimentação dos tripulantes; as tripulações de ambos os navios devem ser bem treinadas em operações de reabastecimento marítimo e, potencialmente, em situação de combate.

Além dos navios logísticos, os porta-aviões são acompanhados por suas escoltas, navios para defesa aérea e antissubmarino, portanto deve haver uma doutrina operacional bem desenvolvida e as equipes devem estar bem adestradas. Possivelmente o ponto mais importante num grupo de batalha não sejam os equipamentos em si, mas um comandante e uma tripulação bem treinados.

A Grã-Bretanha concluiu recentemente a construção de seus dois novos porta-aviões, o Queen Elizabeth e o Prince of Wales, e dias atrás foi noticiado que o Queen Elizabeth será enviado à região do Pacífico no próximo ano em seu desdobramento inaugural. De acordo com informações publicadas recentemente na imprensa especializada, o porta-aviões, que está finalizando sua fase de testes e será oficialmente entregue à Royal Navy em dezembro de 2020, participará de exercícios militares com os EUA, o Japão e outros aliados como parte de uma aliança internacional de oposição à China.

A tripulação do Queen Elizabeth, de atualmente cerca de 700 homens, deverá subir para 1.600 quando todos os helicópteros e aviões de combate estiverem embarcados. Especula-se que durante sua estadia no Pacífico o navio contará com dois esquadrões de jatos F-35B Lightning II, provavelmente uma mescla de aeronaves da RAF e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA. Seu grupo de batalha será composto por dois destroieres Tipo 45, duas fragatas Tipo 23, dois navios logísticos e um submarino nuclear.


Região do Pacífico e Mar do Sul da China, onde o Queen Elizabeth deverá operar (Imagem: The Times).

O vice-almirante Jerry Kyd, comandante da United Kingdom Strike Force, disse ao jornal The Times em 13 de julho passado que a Marinha Real “Voltaria à região do Indo-Pacífico”. Ele afirmou que “Nossa ambição é ser absolutamente persistentes e visando o futuro, talvez com um grupo de batalha, talvez não. Vamos ver”, disse ele, aventando a perspectiva de jatos F-35 britânicos operando na região, dizendo que eles poderiam ser abastecidos “por meio de nossos aliados americanos e pelo hub no Japão”. Um porta-aviões britânico poderia levá-los até lá e trazê-los de volta, disse ele em um seminário on-line organizado pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Institute for International Strategic Studies, um think tank sediado em Londres). As ideias estão sendo avaliadas como parte de uma revisão da política externa de defesa e de segurança, que deve ser concluída no próximo outono europeu. Os especialistas dizem que há uma “orientação marítima” na parte de defesa da revisão.


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O marechal-do-ar Gerry Mayhew, vice-comandante de operações do Comando Aéreo, sugeriu que os aliados britânicos na região receberiam uma maior presença militar britânica. Segundo ele, os parceiros do Extremo Oriente, através dos acordos de defesa com as “Cinco Potências”[1], com o Japão e muitos outros “estão realmente empolgados com as oportunidades aéreas e marítimas que trazemos”.

Apesar disso, nem tudo é otimismo. O vice-almirante Jeremy Blackham, que foi Vice-comandante da Frota, advertiu: “Se você manda navios para longe de casa com apoio militar e logístico necessariamente limitado, tem que saber qual será a sua reação se alguém disser que você está blefando”. Já um porta-voz do Ministério da Defesa afirmou que “O HMS Queen Elizabeth e suas escoltas dão ao Reino Unido a capacidade soberana de um grupo de ataque de classe mundial. Nenhuma decisão foi tomada sobre a implantação do HMS Queen Elizabeth”.


Os gargalos marítimos da China (Imagem: Geopolitical Futures).

Analistas consideram que a decisão de enviar um porta-aviões ao Pacífico está relacionada às ações chinesas em Hong Kong. Possessão britânica cedida pela China em 1842 no final da Primeira Guerra do Ópio, Hong Kong foi devolvida ao controle chinês em 1997. A recente repressão no território é vista pelos britânicos como uma violação das garantias dadas pela China sobre a preservação de direitos durante a transição e, portanto, como uma violação de compromissos chineses com a Grã-Bretanha.

Em entrevista ao The Times em 18 de julho, Liu Xiaoming, embaixador de Pequim em Londres, manifestou-se alertando a Grã-Bretanha contra este desdobramento, argumentando que seria uma “jogada muito perigosa”. Xiaoming disse que, tendo saído da União Europeia, Londres não deveria “unir-se aos Estados Unidos contra os chineses” em mobilizações militares.

Xiaoming considerou ainda que a decisão é “decepcionante e errada” e previu que isso irá minar bilhões de libras de investimento de empresas chinesas na Grã-Bretanha. “Agora tudo mudou”, disse ele ao Times, acrescentando também que a decisão britânica de excluir a Huawei da implantação da rede 5G no país é um exemplo para outras empresas chinesas.


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Ele disse ainda que “Depois do Brexit, acho que o Reino Unido ainda quer desempenhar um papel importante no mundo”, mas ressalvou que “Essa não é a maneira de desempenhar um papel importante”.

Embora as expectativas britânicas em relação ao futuro de Hong Kong possam ter sido frustradas pela China, a decisão de enviar um porta-aviões ao Pacífico envolve mais do que isso. Há outros interesses. A implantação de um porta-aviões é, na maior parte das vezes, uma decisão muito mais política do que militar. A Grã-Bretanha busca voltar a ser reconhecida como uma força significativa, e, como geralmente ocorre, o ato de desdobrar navios de guerra durante uma disputa envia ao oponente uma mensagem que diz que, embora não haja intenção de uma ação militar efetiva, o poderio está disponível se as circunstâncias mudarem.

Ao término do relacionamento com a União Europeia representado pelo Brexit, os britânicos querem recuperar sua identidade como algo mais do que apenas um país europeu, e a reconstrução de seu poderio naval simboliza uma espécie de retorno às origens. O país não apenas teria deixado a União Europeia, mas voltaria a ser uma nação marítima com soberania garantida pela Marinha Real.

Mas uma ameaça à China é apenas simbólica, e o país sabe que não pode realmente fazer uma guerra – e nem é esse o seu objetivo. Assim, a decisão de enviar um porta-aviões ao Pacífico representa, na prática, uma aproximação maior com os Estados Unidos como alternativa à União Europeia.


Bases e instalações navais americanas no Indo-Pacífico (Imagem: Geopolitical Futures).

Os EUA vêm travando uma longa disputa com Pequim, dispõem uma vasta marinha e, ainda mais importante, uma longa experiência de guerra naval que a China não tem. Outras considerações podem ser feitas. Enquanto o interesse da China é controlar o Mar do Sul da China, os EUA querem negar esse controle. Em outras palavras, os EUA querem impor riscos ao uso dessas águas pela China e esta deseja expulsa-los da região.

De acordo com alguns analistas, a situação geopolítica na região torna mais árduo o objetivo chinês. Os EUA têm alianças com Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Austrália e Singapura; de forma às vezes duvidosa, também com as Filipinas; e ultimamente, a Índia vem se aproximando. Isso significa que os EUA possuem aliados desde as Ilhas Aleutas, entre o Pacífico Norte e o Mar de Bering, próximo do Alaska, até o Estreito de Malaca, um dos gargalos chineses no Pacífico. Por outro lado, a China tem uma cooperação significativa com o Camboja, mas não possui outros aliados formais. Esse contexto sugere que os chineses podem estar isolados geográfica e politicamente, o que pode ajudar a explicar seu esforço em construir uma marinha poderosa.

Voltando aos britânicos, historicamente eles sempre procuraram complementar seu poderio naval com alianças. Nesse sentido, participar dessa coalizão representa mais para a Grã-Bretanha do que simplesmente mostrar contrariedade em relação às ações da China em Hong Kong, mas reforça suas alianças, em especial com os EUA. Procura mostrar que a Marinha Real está voltando a atuar globalmente e que, ainda que não seja uma superpotência, a Grã-Bretanha continua a ser um poder respeitável. Nesse contexto, os riscos talvez sejam baixos, mas o preço é alto. Grupos de batalha centrados em porta-aviões não são baratos, e muito menos a capacidade de atuar como uma potência global.

Notas

[1] Five Power Defence Arrangements (FPDA), uma série de relações de defesa estabelecidas por acordos multilaterais entre o Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Malásia e Cingapura em 1971, pelos quais os cinco países devem consultar-se “imediatamente” em caso de ameaça de ataque armado a qualquer um deles com o objetivo de decidir que medidas devem ser tomadas como resposta, em conjunto ou separadamente.

Fontes

ROBINSON, James. Big Lizzie will confront China: £3bn aircraft carrier HMS Queen Elizabeth “will be deployed to the Far East to take part in military drills with US and Japan”. Mail Online, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/news/article-8519621/HMS-Queen-Elizabeth-sent-Far-East-military-drills-Japan.html. Acesso em: 23 de julho de 2020.

China warns Britain over basing aircraft carrier in Pacific. The Strait Times, 18 de julho de 2020. Disponível em: https://www.straitstimes.com/world/europe/china-warns-britain-over-basing-aircraft-carrier-in-pacific. Acesso em: 23 de julho de 2020.

FISHER, Lucy. Britain set to confront China with new aircraft carrier HMS Queen Elizabeth. The Australian, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://www.theaustralian.com.au/world/the-times/britain-set-to-confront-china-with-new-aircraft-carrier/news-story/b8d2c49bfbaefa00f0888c89e1f95b8a. Acesso em: 22 de julho de 2020.

ALLISON, George. British supercarrier HMS Queen Elizabeth to deploy to the Pacific. UK Defence Journal, 28 de junho de 2020. Disponível em: https://ukdefencejournal.org.uk/british-supercarrier-hms-queen-elizabeth-deploy-pacific/. Acesso em: 22 de julho de 2020.

FRIEDMAN, George. The Queen Elizabeth and the Prince of Wales. 22 de julho de 2020. Geopolitical Futures, 22 de julho de 2020. Acesso em: 22 de julho de 2020.


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4 comentários

  1. De tirar o fôlego o artigo. Não poderia ser diferente. O Velho (e bom) General somente publica e divulga matérias especiais. E, a presente, é especial.
    Parabéns ao autor.
    Honrado pela oportunidade que me ofereceu em ler o artigo.
    Obrigado.

  2. Excelente artigo.
    Assisti hoje a live sobre minas navais e fiquei pensando na situação da China, com essa dependência do mar do sul pra locomoção e abastecimento e com tantos inimigos em várias frentes na região.
    Num potencial conflito, cercar o acesso à China com centenas de milhares de minas navais, seria devastador para a China.

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