O Acordo da Sexta-feira Santa

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Albert-VF1 Por Albert Caballé Marimón*

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Imagem: adaptação do original de The Detail.

O Acordo de Belfast, que ficou mais conhecido como Acordo da Sexta-feira Santa, envolveu todas as frentes políticas e grupos paramilitares da Irlanda do Norte, encerrou o período de décadas de violência que ficou conhecido como The Troubles, e assistiu à dissolução do IRA, o Exército Republicano Irlandês.


Em 10 de abril de 1998 foi assinado o chamado Acordo da Sexta-feira Santa (The Good Friday Agreement ou, formalmente, o Acordo de Belfast), que ajudou a encerrar na Irlanda do Norte o período que ficou conhecido como de The Troubles (“Os Problemas”), marcado pela violência entre dois grupos: Republicanos e Legalistas.

Após centenas de anos de domínio britânico, a República da Irlanda separou-se do império, mas a Irlanda do Norte continuou como parte do Reino Unido. Isso ocasionou uma divisão em duas correntes: os Sindicalistas, de maioria protestante, que defendiam a permanência do país no Reino Unido – chamados de “Legalistas” pela lealdade à coroa britânica, e os Nacionalistas, formados principalmente pela minoria católica, que queriam que a Irlanda do Norte se unisse à República da Irlanda; ficaram conhecidos também como “Republicanos”.

Dificuldades econômicas e desemprego levaram os Republicanos/Nacionalistas a iniciarem uma série de protestos. Em resposta, os Sindicalistas/Legalistas também protestaram. Durante a década de 1960, a tensão entre os dois lados descambou para a violência, resultando no The Troubles.

Os anos de 1970 aos 1990 foram marcados por combates entre grupos armados de ambos os lados, resultando em muitas mortes. Tropas britânicas foram enviadas à região e entraram em conflito com grupos armados Republicanos, dos quais o maior e mais famoso foi o Exército Republicano Irlandês (IRA, Irish Republican Army).

O IRA realizou diversos ataques e assassinatos na Grã-Bretanha e na Irlanda do Norte, mas grupos armados Legalistas também foram responsáveis por muitos atentados, entre eles a Associação de Defesa do Ulster (UDA, Ulster Defence Association) e a Força de Voluntários do Ulster (UVF, Ulster Volunteer Force).

Em particular o IRA, internacionalmente mais conhecido, visava a polícia e as tropas do exército britânico que patrulhavam as ruas. A situação piorou muito em 1972, no episódio que ficou conhecido como Domingo Sangrento (Bloody Sunday), quando quatorze pessoas foram mortas por tropas britânicas durante uma marcha pacífica por direitos civis liderada por católicos e Republicanos em Londonderry[1].

Ao longo dos anos foram feitas várias tentativas de paz, entre elas o Acordo de Sunningdale de 1973, o Acordo Anglo-Irlandês em 1985 e a Declaração de Downing Street em 1993. Nenhum deles foi bem sucedido.

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Negociações

Em novembro de 1992, o presidente americano Bill Clinton, pressionado por irlandeses-americanos, congressistas e pelo taoiseach[2] Albert Reynolds, concordou em envolver os EUA de forma mais ativa no processo de paz na Irlanda do Norte.

Em janeiro de 1994, Clinton concedeu ao líder do Sinn Féin[3], Gerry Adams[4], um visto de 48 horas para visitar Nova York. Em janeiro do ano seguinte, criou uma nova posição diplomática, o Enviado Especial para a Irlanda do Norte, e designou para o cargo o ex-senador democrata George Mitchell[5]. Em março de 1995 Gerry Adams voltou aos EUA e Clinton o cumprimentou num evento do Dia de São Patrício em Washington. Todos esses eventos marcaram uma mudança significativa na política dos EUA, mas não foram bem aceitos por muitos na Grã-Bretanha, incluindo o primeiro-ministro John Major[6].

O cessar-fogo provisório do IRA de agosto de 1994, seguido pelos demais grupos Legalistas, foi muito importante, criando uma oportunidade para abertura de negociações envolvendo todas as partes.

Em fevereiro de 1995, Londres e Dublin divulgaram documentos descrevendo os termos sugeridos para um acordo de paz e a formação de um governo na Irlanda do Norte. Ao mesmo tempo, nos bastidores, houveram negociações com os grupos paramilitares para que se chegasse a um acordo sobre o desarmamento.

Os Princípios de Mitchell

Em novembro de 1995, Londres e Dublin emitiram um comunicado conjunto no qual descreviam um processo para as negociações e deposição de armas. Em janeiro de 1996, uma comissão internacional chefiada por George Mitchell apresentou um relatório sugerindo diretrizes para a deposição de armas e um conjunto de princípios para nortear as negociações de paz. Os Princípios de Mitchell, como ficaram conhecidos, foram adotados como sendo a base para as negociações.

A maioria dos partidos políticos da Irlanda do Norte queria participar das negociações de paz, incluindo o Partido Unionista de Ulster (UUP, Ulster Unionist Party), o Sinn Féin (tido por muitos como o braço político do IRA), o Partido Social Democrata e Trabalhista (SDLP, Social Democratic and Labour Party), o Partido da Aliança (Alliance Party), o Partido Democrático de Ulster (UDP, Ulster Democratic Party), alinhado com os Legalistas e a Coalizão Trabalhista. No entanto, os Sindicalistas se recusaram a participar de negociações de paz sem que houvessem evidências claras de que o IRA começara a desativar suas armas. O governo de John Major, que dependia de votos Sindicalistas, também insistiu em evidências como condição para que o Sinn Féin fosse aceito nas negociações.

Em 9 de fevereiro de 1996, os líderes do IRA Provisório[7], indignados, encerraram o cessar-fogo de agosto de 1994. Mais tarde naquele mesmo dia, a organização detonou um caminhão-bomba nas docas de Londres, matando duas pessoas, ferindo dezenas e causando consideráveis ​​danos materiais. Em 15 de junho, uma bomba explodiu em Manchester, ferindo mais de duzentas pessoas e causando severos danos a um estabelecimento comercial.

O IRA continuou a realizar ataques no ano seguinte, até que em 19 de julho de 1997 declarou um novo cessar-fogo. Em setembro, depois de concordar em cumprir os Princípios de Mitchell, o Sinn Féin foi aceito nas negociações de paz. Os Sindicalistas moderados também passaram a participar das negociações.

Violência ameaça o processo de paz

Em dezembro de 1997, o líder Legalista Billy Wright[8] foi morto a tiros por membros do Exército Irlandês de Libertação Nacional (INLA, Irish National Liberation Army) na HM Prison Maze[9], desencadeando retaliações na forma de uma onda de assassinatos em Belfast e Londonderry. Em 9 de fevereiro, um homem católico foi morto a tiros na delegacia de Belfast. No dia seguinte, um membro da Associação de Defesa de Ulster (UDA, Ulster Defence Association) foi assassinado pelo IRA em Dunmurry. Um mês depois, Damian Trainor e Philip Allen, dois homens que bebiam juntos num bar no condado de Armagh, foram mortos a tiros. Trainor era católico e Allen protestante; eram amigos e não eram membros de nenhum grupo. O assassinato de dois civis que superavam a divisão sectária e religiosa ganhou as manchetes dos jornais.

Esses incidentes não interromperam o processo de paz. Mitchell manteve as negociações, apoiado por uma decisão de Tony Blair[10] de convocar uma nova investigação sobre o Domingo Sangrento e por conversas entre Bill Clinton e os principais participantes.

Às 17h30 do dia 10 de abril de 1998, George Mitchell anunciou o acordo: “Tenho o prazer de anunciar que os dois governos e os partidos políticos na Irlanda do Norte chegaram a um acordo”.

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O Acordo

O Acordo da Sexta-feira Santa afirmava que parte do povo na Irlanda do Norte e a maioria da República da Irlanda desejavam uma Irlanda unida e que, apesar de ser um objetivo legítimo, qualquer alteração no status da Irlanda do Norte só poderia acontecer com o consentimento da maioria de seu povo, que tinha direito a um governo exercido com rigorosa imparcialidade e igualdade de direitos civis, políticos, sociais e culturais. Para atingir este objetivo, apresentava três “Vertentes”:

Vertente Um: tratava das instituições e políticas governamentais. Reformou a Assembleia e criou um novo Executivo da Irlanda do Norte. A Assembleia seria eleita com um sistema de representação proporcional e o executivo, baseado no princípio de compartilhamento de poder, seria liderado por um Primeiro Ministro e um Vice-Primeiro Ministro. Apesar dos títulos, eles compartilhariam o mesmo poder. Os Primeiros Ministros viriam dos partidos Sindicalistas e Nacionalistas e deviam ter apoio do público.

Vertente Dois: abordava as “questões norte-sul” entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Foram criados três órgãos transfronteiriços: um Conselho Ministerial Norte-Sul, uma Associação Interparlamentar Norte-Sul e um Fórum Consultivo Norte-Sul. Esses órgãos incentivariam a discussão e cooperação entre Belfast e Dublin. Embora não tivessem poder legislativo, suas recomendações deveriam ser adotadas por ambos os governos.

Vertente Três: cuidava das “questões leste-oeste” entre a Grã-Bretanha e a República da Irlanda. Também estabeleceu três órgãos transfronteiriços: uma Conferência Intergovernamental, um Órgão Interparlamentar e um Conselho Britânico-Irlandês. Esses órgãos discutiriam assuntos não delegados à Irlanda do Norte e estabeleceriam políticas ou abordagens comuns.

O fim do “The Troubles”

O acordo previa ainda medidas práticas para encerrar a violência na Irlanda do Norte. Exigia que os signatários reafirmassem seu compromisso com o desarmamento total de todas as organizações paramilitares. Partidos com vínculos com grupos armados foram instados a trabalhar pelo desmantelamento de todas as armas dos paramilitares num período de dois anos. O acordo também identificou a necessidade de reformar o policiamento na Irlanda do Norte; uma revisão independente seria realizada em relação a essa questão. Por último, o acordo prometia a libertação de prisioneiros que cumpriam pena por crimes relacionados ao The Troubles, condicionada à manutenção do cessar-fogo e ao compromisso com o desarmamento pelos grupos paramilitares.

Milhares de cópias do acordo foram distribuídas na Irlanda do Norte e na República da Irlanda para que as pessoas se informassem sobre os termos antes da votação de um referendo. Em maio de 1998, a Irlanda do Norte e a República da Irlanda votaram pela aprovação do Acordo da Sexta-feira Santa, tornando-o oficial. A Assembleia da Irlanda do Norte foi instalada em dezembro daquele ano.

No entanto, apesar de ter sido um passo importantíssimo no processo de paz, o acordo não encerrou completamente os problemas da Irlanda do Norte. Houve acusações de espionagem e alguns partidos políticos alegaram que não podiam trabalhar juntos. Em 2002, a Assembleia foi suspensa e suas funções retornaram ao Reino Unido. Em 2007 recebeu o poder de volta e o Exército Britânico encerrou oficialmente suas operações na Irlanda do Norte. Em janeiro de 2017, o acordo entrou novamente em colapso, a Assembleia perdeu novamente os poderes e reabriu quase três anos depois, no início de janeiro de 2020.

Em 11 de janeiro, os membros da Assembleia elegeram Arlene Foster (DUP), como Primeira Ministra, Michelle O’Neill (Sinn Féin), como Vice-Primeira Ministra e Alex Maskey (Sinn Féin) como porta-voz.

Boris Johnson disse que a restauração do compartilhamento de poder era muito importante. “Ao começarmos uma nova década, podemos esperar um futuro melhor para todos na Irlanda do Norte com um executivo que possa transformar os serviços públicos e melhorar a vida das pessoas”.

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Leo Varadkar, o taoiseach, disse que a restauração do compartilhamento de poder marcou um dia histórico para a Irlanda do Norte. “Todos os partidos e políticos da Irlanda do Norte devem ser elogiados por sua decisão de colocar as pessoas que representam em primeiro lugar e fazer compromissos para chegar a um acordo”.

O ex-presidente dos EUA Bill Clinton também se manifestou, e disse no Twitter: “Eu me preocupo profundamente com o povo da Irlanda do Norte e sou grato por seus líderes se unirem no espírito dos Acordos da Sexta-feira Santa para defender o Executivo e restaurar as funções do governo que as pessoas de todas as comunidades exigem. Espero que o BREXIT respeite os Acordos da Sexta-feira Santa e o sacrifício e visão de tantas pessoas mais de duas décadas atrás”.

Espera-se que essa nova fase seja duradoura e traga progressos. No entanto, embora os políticos continuem discordando, não houve retorno da violência e a Irlanda do Norte é hoje um lugar muito mais pacífico do que já foi no passado. Muitos afirmam que essa paz se deve ao Acordo da Sexta-feira Santa.

Notas

[1] Cidade às margens do rio Foyle, na Irlanda do Norte

[2] Título em idioma gaélico do primeiro-ministro da República da Irlanda.

[3] Sinn Féin é um partido político de centro-esquerda / esquerda na República da Irlanda e na Irlanda do Norte. A organização original foi fundada em 1905 mas se dividiu várias vezes. Sua forma atual surgiu em 1970 após mais uma divisão (a outra facção tornou-se o Partido dos Trabalhadores da Irlanda). Historicamente tem sido associado ao IRA Provisório.

[4] Gerard “Gerry” Adams, republicano irlandês, foi presidente do Sinn Féin de 1983 a 2018.

[5] George John Mitchell Jr., advogado, empresário, autor e político americano, foi senador dos EUA pelo Partido Democrata de 1980 a 1995. Foi Enviado Especial dos EUA para a Irlanda do Norte (1995–2001) pelo presidente Clinton e Enviado Especial dos EUA para a paz no Oriente Médio (2009–2011) pelo presidente Barack Obama.

[6] Sir John Major foi primeiro-ministro do Reino Unido e líder do Partido Conservador de 1990 a 1997.

[7] O IRA Provisório (1969-1998), foi o mais forte grupo sucessor do IRA após 1919 e esteve fortemente ligado à refundação do Sinn Féin. Encerrou a luta armada em 1998 com a celebração do Acordo de Sexta-Feira Santa. Neste artigo, IRA e IRA Provisório são a mesma organização.

[8] Billy “King Rat” Wright (1960-1997), nascido na Inglaterra, foi um líder Legalista durante o período The Troubles. Ingressou na Força Voluntária de Ulster (UVF) em 1975.

[9] “Her Majesty Prison Maze” foi uma prisão na Irlanda do Norte para prisioneiros paramilitares durante o The Troubles, de meados de 1971 a meados dos anos 2000. Localizava-se na antiga estação da Força Aérea Real de Long Kesh.

[10] Anthony Charles Lynton Blair foi Primeiro Ministro britânico de 1997 a 2007 e Líder do Partido Trabalhista de 1994 a 2007.

Referências

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*Albert Caballé Marimón possui formação superior em marketing, é fotógrafo profissional e editor do blog Velho General. Já atuou na cobertura de eventos como a Feira LAAD, o Exercício CRUZEX e a Operação Acolhida. É colaborador da revista Tecnologia & Defesa e do Canal Arte da Guerra, onde, entre outras atividades, mantém uma resenha semanal de filmes e documentários militares. Entre suas atividades, já proferiu palestras para os cadetes da Academia da Força Aérea. Pode ser contatado através do e-mail caballe@gmail.com.


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2 comentários

  1. Muito esclarecedor. Preciso nas informações e nos detalhes. Só elogios. Parabéns.
    Como é agradável ler artigos assim. Durante o dia já fico ansioso pelo aviso de novas mensagens na minha caixa de email…e, quando vejo que são do “velho general”, a ansiedade de acessar é quase infantil.
    Abraços.

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