Rússia aprende lições militares na Síria

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Albert-VF1 Por Albert Caballé Marimón*

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Sukhoi Su-33 no porta-aviões russo Almirante Kuznetsov em 28 de outubro de 2016. Em janeiro de 2017, o navio visitou a Líbia e hospedou a bordo o general Khalifa Haftar, líder do Exército Nacional da Líbia. (Jane’s).

Desde 2015, os militares russos estão intimamente envolvidos no conflito sírio e implantaram uma extensa rede de comando e controle para suas forças e aliados. Nesta análise, Tim Ripley, da Jane’s, faz uma avaliação da implicação dessa experiência para futuras intervenções militares russas em outras zonas de conflito.

Dois dias depois que as tropas sírias, apoiadas por forças especiais russas e helicópteros de ataque, retomaram a cidade deserta de Palmira do Estado Islâmico em março de 2017, equipes de televisão de Moscou viajaram para filmar um concerto musical em meio às icônicas ruínas arqueológicas. À postos para fazer comentários positivos para a TV Rússia 1 estava o comandante do grupo de forças russas na Síria, o coronel-general[1] Andrei Kartapolov. O general já era um rosto familiar para o público televisivo russo e internacional após seu papel em 2015 como o “rosto da mídia” da intervenção do Kremlin durante as coletivas de imprensa de Moscou sobre o conflito sírio.

A presença do principal comandante militar russo na Síria, tão perto da linha de frente – os combatentes do Estado Islâmico ainda estavam a menos de dois quilômetros de distância, lutando com tropas sírias ao redor da base aérea de Palmira – era uma ilustração vívida do papel desempenhado pelos altos oficiais de Moscou no conflito sírio. Para observadores externos, a intervenção russa na Síria oferece informações importantes sobre como as forças armadas russas organizam e executam guerras expedicionárias no século XXI.


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FIGURA 1 – Comando e controle russo (IHS Markit).

Rede de comando russa

Embora a presença das aeronaves de ataque e helicópteros das Forças Aeroespaciais da Rússia na Base Aérea de Humaymin, na província de Latakia, na Síria, esteja geralmente no centro da cobertura de imprensa da intervenção de Moscou, seus militares também estabeleceram uma extensa presença de Comando e Controle (C2) em toda a Síria para vincular o contingente russo a seus equivalentes sírios.

As forças armadas russas fornecem apenas relances ocasionais de sua estrutura de comando na Síria, mas é possível reunir informações de briefings de mídia, análise de notícias de fontes públicas, imagens em mídias sociais da Síria e análises da linha do tempo das operações militares russas. Essas fontes podem ser usadas para criar uma imagem de como Moscou controla suas forças na Síria. Algumas dessas operações são altamente complexas, envolvendo forças aéreas e navais estratégicas que operam longe da Síria, indicando ligações C2 de alto nível entre os militares russos.

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Por muitos meses, a Rússia manteve em segredo o nome do comandante de campo na Síria e nem sequer reconheceu que tinha um comandante destacado. As identidades dos principais comandantes da Força Aérea na Base Aérea de Humaymin também nunca foram reveladas, nem mesmo para a mídia russa.

Vários meios de comunicação russos reportaram a partir de bases russas na Síria desde o final de 2015 e entrevistaram comandantes de nível médio, operadores de forças especiais e pilotos da força aérea. Seus relatos fornecem uma visão de como essas operações militares são organizadas. Obituários de altos oficiais russos mortos na Síria acrescentam uma camada adicional de detalhes.


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FIGURA 2 – Imagens da Airbus Defence and Space (CNES 2017, Distribuição Airbus DS/IHS Markit).

Fotografias e vídeos postadas nas mídias sociais da Síria e disponíveis na mídia tradicional, juntamente com imagens de satélite das bases sírias e russas, também contribuem para o entendimento das operações. É possível identificar antenas de comunicação por satélite, antenas de rádio e veículos e edifícios de comando. A presença de veículos de ligação russos e a implantação de pessoal é esclarecedora. O relacionamento que se desenvolve entre altos oficiais russos e sírios também pode ser rastreado.

Desde o início da intervenção, os militares russos fizeram um grande esforço para criar uma rede C2 que espelhasse a cadeia de comando militar síria. O comandante das forças russas, geralmente um coronel-general ou um tenente-general, está baseado na capital síria de Damasco, perto do Ministério da Defesa da Síria (MoD, Ministry of Defense) e do Alto Comando Militar. Oficiais russos de alto escalão com patentes de coronel-general ou tenente-general foram fotografados visitando quartéis do exército sírio em todo o país, atuando como conselheiros em longo prazo ou em visitas de apuração de fatos.


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FIGURA 3 – Piloto russo embarca em Sukhoi Su-25. Dado que a Rússia alega ter voado mais de 18.000 missões de combate sobre a Síria, com relativamente poucos problemas sérios além da derrubada de uma aeronave em 2015, isso sugere que as medidas de coordenação do espaço aéreo russo foram relativamente eficazes. Vide Nota 2 mais abaixo (PA).

Centro de coordenação

Além de sua rede de coordenação e consultoria com as forças armadas sírias, as forças armadas russas criaram outra organização conhecida como Centro de Coordenação para a Reconciliação de Oponentes (CCROS, Coordination Center for Reconciliation of Opposing Sides) na República Árabe da Síria. De acordo com os anúncios do Ministério da Defesa da Rússia, o centro começou seu trabalho em fevereiro de 2016, possui uma equipe de mais de sessenta funcionários e uma sede na Base Aérea de Humaymin, com um tenente-general no comando.

Essa organização frequentemente aparece em reportagens da mídia Síria, bem como nas declarações do Ministério da Defesa da Rússia, e é descrita como envolvida na intermediação de cessar-fogo entre as comunidades locais e depois para garantir acordos para que elas voltem ao controle do governo sírio. Como parte desses acordos, os representantes do centro de reconciliação costumam estar presentes para escoltar combatentes e suas famílias para fora de enclaves e daí em diante para outros territórios controlados pela oposição.

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Oficiais do centro de reconciliação desempenharam um papel fundamental na coordenação da evacuação de combatentes da oposição do leste de Aleppo, juntamente com mais de 30.000 civis, no segundo semestre de 2016. O centro de reconciliação também desempenha um papel na prestação de ajuda humanitária e apoio médico a civis por meio de vínculos com autoridades civis sírias locais e agências de assistência da ONU.

Relatos na mídia de Moscou sobre os controladores aéreos avançados russos sugerem que o centro de reconciliação também desempenha um papel importante na coleta de inteligência e operações de combate. Aparentemente, os controladores aéreos avançados comunicam-se rotineiramente com o centro de reconciliação antes de autorizar ataques aéreos para verificar a afiliação política das comunidades dentro do alcance do ataque. Esse papel – mapear a “geografia humana” da complexa e multifacetada guerra civil síria – sugere um grau de sofisticação no planejamento militar dos altos oficiais russos que muitas vezes não é apreciado por observadores externos.


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FIGURA 4 – Imagens da Airbus Defence and Space (CNES 2016, distribuição Airbus DS/IHS Markit).

O chefe do centro no final de 2016 era o tenente-general Vladimir Savchenko, que substituiu o primeiro chefe, o tenente-general Sergei Kuralenko. O tenente-general Kuralenko já havia chefiado o centro de compartilhamento de inteligência russo-sírio-iraquiano-iraniano em Bagdá em 2015, o que reforça ainda mais o papel de inteligência do centro de reconciliação.

Desde 2015, as Forças Armadas russas empregam uma variedade de sistemas estratégicos de armas na Síria, incluindo mísseis Kalibr lançados por navios e submarinos, mísseis de cruzeiro ar-superfície, bombardeiros pesados, mísseis de ataque terrestre e aeronaves de ataque lançadas por porta-aviões. O emprego desses sistemas de armas parece ser coordenado pelo Estado Maior Russo do Centro de Comando de Defesa Nacional de Moscou.

O presidente Vladimir Putin ordenou um grande ataque aéreo e de mísseis contra posições na Síria em novembro de 2015 durante uma transmissão ao vivo no centro de comando. A partir das imagens, ele parece estar equipado com amplas instalações de comunicação digital, incluindo links de videoconferência para a sede na Síria.


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FIGURA 5 – Forças armadas russas em veículos blindados perto do Aeroporto Internacional de Aleppo. Os oficiais do centro de reconciliação desempenharam um papel fundamental na coordenação da evacuação de combatentes da oposição do leste de Aleppo, juntamente com mais de 30.000 civis (PA).

Lições aprendidas

Durante a era soviética, as forças armadas de Moscou enviavam rotineiramente apoio a aliados em uma série de conflitos, de Angola ao Afeganistão. No entanto, é provável que haja poucos oficiais ainda na ativa que possam compartilhar essas experiências. Nos últimos 25 anos, as forças armadas da Federação Russa se viram operando principalmente “em casa” ou em território de países vizinhos. As tropas russas participaram de várias missões de manutenção da paz autorizadas pela ONU, inclusive na Bósnia e no Kosovo na década de 1990, mas eram assuntos de escala relativamente pequena e envolviam apenas forças terrestres e helicópteros.

Nesse contexto, a operação na Síria representa um empreendimento ambicioso para os militares russos. Envolveu as Forças Armadas com soluções inovadoras para os desafios de C2 que não foram enfrentados na memória recente. Alguns dos desafios operacionais, particularmente os que envolvem atividades aéreas e ataques de mísseis estratégicos, são completamente novos para eles.

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As forças armadas russas claramente tiraram muitas lições a partir do estudo de operações ocidentais no Afeganistão, nos Bálcãs e no Iraque. Elas tem se empenhado em adotar e integrar UAV (Unmanned Aerial Vehicles, veículos aéreos não tripulados) em suas operações em coordenação com o emprego de munições guiadas de precisão “inteligentes”.

A operação na Síria também envolveu pela primeira vez cooperação significativa com uma série de novos “aliados”, incluindo milícias palestinas, Hezbollah libanês, milícias xiitas iraquianas e forças iranianas. Teerã tinha uma missão consultiva semelhante na Síria, por isso tinha que ser coordenada com os militares russos. As missões iranianas de UAV e Lockheed C-130 Hercules também tiveram que ser coordenadas com as operações aéreas russas. A coordenação de movimentos aéreos estratégicos e ataques de mísseis com países vizinhos da Síria, incluindo Iraque, Irã e Chipre, bem como a coalizão liderada pelos EUA, também foi um novo desenvolvimento para os militares russos.


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FIGURA 6 – Militares russos parecem usar um tablet e observar imagens de satélite. Desde o início de sua intervenção, os russos fizeram um grande esforço para criar uma rede C2 que espelhasse a cadeia de comando militar síria (PA).

Além do abate de um Sukhoi Su-24 russo por uma aeronave turca em novembro de 2015 e o bombardeio de tropas sírias por aeronaves dos EUA e da coalizão em setembro de 2016, até abril de 2017 não houve incidentes graves. Dado que a Rússia alega ter voado mais de 18.000 missões de combate sobre a Síria[2], isso sugere que as medidas de coordenação do espaço aéreo russo foram relativamente eficazes.

Panorama

A intervenção russa na Síria foi uma grande experiência de aprendizado para os militares russos em todo um espectro de operações militares. Através da análise de fontes públicas, é possível ver como o C2 russo evoluiu nos dezoito meses desde o início de sua intervenção. Os primeiros ataques aéreos em setembro de 2015 pareciam ser amplamente planejados em alvos estáticos. Em março de 2017, quando um punhado de controladores aéreos russos que trabalhavam com tropas sírias recapturaram Palmira, esses agentes estavam coordenando helicópteros de ataque Mil Mi-28 e Kamov Ka-52 contra combatentes do Estado Islâmico que circulavam pela cidade em picapes.


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FIGURA 7 – Veículo blindado equipado com várias antenas parabólicas e de rádio apenas receptoras em fotografia que apareceu no Twitter em março de 2017, alegando mostrar equipamento a serviço do Exército Nacional da Líbia. As forças armadas russas estabeleceram uma extensa presença de C2 na Síria para vincular o contingente russo a seus equivalentes sírios – qualquer potencial intervenção na Líbia seria muito mais desafiadora nesse sentido (Imagem: Twitter/IHS Markit).

Essa experiência significa que os militares russos agora têm quadros de oficiais, de todas as fileiras, expostos à coordenação de operações aéreas e de mísseis em larga escala, integração com forças e governos aliados, além de operar sistemas de comunicações e links de comando necessários para fazer tudo isso acontecer. Essa experiência também tem implicações importantes para a capacidade do exército russo de operar no cenário global. A Rússia agora tem claramente a capacidade de conduzir uma “guerra de coalizão” em ambientes complexos, tornando-a um parceiro potencialmente atraente para futuros aliados.


ASSISTA AO VÍDEO 1067 DO CANAL ARTE DA GUERRA: 39.000 MISSÕES E 19 PERDAS: A AVIAÇÃO RUSSA NA SÍRIA


Para os governos e forças armadas ocidentais, a intervenção russa na Síria tem sido profundamente desconcertante. O aparente renascimento do poderio militar russo e seu ressurgimento como ator no Oriente Médio interromperam a influência ocidental na região. A sofisticação das estruturas C2 russas na Síria sugere que Moscou tem potencial para repetir esse tipo de operação em outros teatros.

A Rússia está claramente embarcando em uma política externa e de defesa mais ambiciosa e militarmente afirmativa após sua intervenção na Crimeia e no leste da Ucrânia desde 2014. Moscou também parece estar interessada em desenvolver sua atuação no conflito líbio. Em janeiro de 2017, o Almirante Kuznetsov visitou a Líbia e hospedou a bordo o general Khalifa Haftar, líder do Exército Nacional da Líbia. A Reuters informou em março que as Forças Especiais Russas estavam operando a partir de bases no oeste do Egito, perto da fronteira com a Líbia.

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Notas

[1] Posto mais ou menos similar ao general-de-divisão no Exército Brasileiro. Dado o fato de que muitos países possuem mais postos de oficial-general em sua organização hierárquica do que as Força Armadas brasileiras, é difícil determinar uma equivalência precisa. Assim, adotamos uma interpolação com base nos ranks da OTAN e consideramos um coronel-general equivalente ao general-de-divisão do Exército Brasileiro ou major-brigadeiro-do-ar da FAB.

[2] Esta análise é de 2017, quando a Rússia tinha voado 18.000 missões. Hoje este número aumentou para 39.000. E, além do Su-24 mencionado, houve também o abate do Il-20 russo pela Síria em 2018, no episódio envolvendo os F-16 israelenses.


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*Albert Caballé Marimón possui formação superior em marketing, é fotógrafo profissional e editor do blog Velho General. Já atuou na cobertura de eventos como a Feira LAAD, o Exercício CRUZEX e a Operação Acolhida. É colaborador da revista Tecnologia & Defesa e do Canal Arte da Guerra, onde, entre outras atividades, mantém uma resenha semanal de filmes e documentários militares. Entre suas atividades, já proferiu palestras para os cadetes da Academia da Força Aérea. Pode ser contatado através do e-mail caballe@gmail.com.


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6 comentários

  1. Inegável o valor do aprendizado em condições reais de operação e combate. Percebe-se seu fortalecimento para futuras ações em conflitos de coalizão e em teatros de complexidade e problemática avançados. Forte abraço!

  2. A Rússia só tem uma limitação: dinheiro.
    Fazem muito com o pouco que tem. Não entendo como países mais ricos e tecnologicamente mais avançados, como França e Reino Unido, não têm mais poder militar que a Rússia.

  3. É impressionante que com muito menos recursos do que na época soviética, e com a nova guerra fria sendo travada em suas fronteiras os russos conseguem definir políticas claras de política externa que se refletem nas suas operações no exterior. A Síria em relação a condução da guerra, é um claro contraste do que foi o Afeganistão, quando por muitos anos os soldados soviéticos foram esquecidos no país por falta de orientação de Moscou, e quando gorbachev tentou ganhar militarmente o conflito era tarde demais.

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