Os dez segundos do Almirante Arleigh Burke

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Por Robinson Farinazzo*

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Almirante Arleigh Burke (Foto: US Navy) e USS Fitzgerald DDG-62, destróier classe Arleigh Burke (Pintura: James Vaughan/ArtStation)

“A Marinha tem uma tradição e um futuro – e nós olhamos com orgulho e confiança em ambas as direções”

Almirante de Esquadra Arleigh Albert Burke


Por mais rigorosas que sejam as exigências que se faça a um oficial no exercício de suas funções em qualquer Marinha que se analise, as cobranças de carreira dirigidas ao mesmo em época de paz nem de longe se comparam às demandas dos tempos de guerra ou de crise. Fato é que existem militares que se sobressaem muito bem na rotina previsível dos quartéis onde erros podem ser mascarados, mas que talvez não tivessem tanta sorte se postos a prova em situações onde coragem, engenho e tirocínio lhe fossem exigidos o tempo todo. Na guerra, o mais leve engano fica gritantemente perceptível e sujeito à crítica e condenação de todos.

A história que será contada a seguir se enquadra perfeitamente na afirmação acima, pois narra a vida e a carreira de um oficial que, em seus 42 anos a serviço da US Navy, jamais conheceu tempos amenos. E se provou um profissional extremamente valoroso nos anos difíceis que seu país enfrentou.

Arleigh Albert Burke, um descendente de imigrantes suecos, nasceu no interior do EUA, em Boulder, Colorado (1901), e formou-se em Annapolis em 1923. Teve uma carreira naval plena de aprendizado (servindo por cinco anos no encouraçado USS Arizona ele foi chefe da artilharia, oficial de torpedos e encarregado da navegação dentre outras funções). A estas comissões se somariam os diversos cargos que exerceu em vários contratorpedeiros na década de 1930.

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O início da Segunda Guerra Mundial na Europa iria encontrá-lo no comando do USS Mugford (DD-389). Sob Burke, o navio sagrou-se campeão de tiro, máquinas e comunicações e, como inegável prova da competência e liderança de seu comandante, na época foi dito por todos que aquele destróier se enquadrava perfeitamente na clássica definição de “um navio feliz”.

Tão feliz quanto a América, a qual até 1941 se mantinha próspera e fora da guerra. Mas, em 7 dezembro daquele ano os japoneses atacaram a base americana de Pearl Harbor nas Ilhas Havaí, permitindo que toda uma geração de marinheiros americanos que jamais sairiam do anonimato em tempo de paz revelassem seus talentos guerreiros. Dentre eles sobressaíram-se os almirantes King, Nimitz, Mitscher, Fletcher, Halsey e Spruance, mas o Captain (capitão de mar e guerra) Arleigh Burke foi seguramente o comandante de contratorpedeiro (ou destróier) mais famoso de toda a guerra.

E foi por vontade própria que Burke, que até aquela data fatídica se encontrava servindo em um monótono cargo administrativo, seguiu ao encontro do seu destino, tendo servido durante toda a campanha contra os japoneses no Pacífico Sul. Comandando um esquadrão de destróieres na conquista de Bougainville (nas Ilhas Salomão) em novembro de 1943, ele travaria 22 engajamentos contra o inimigo em apenas quatro meses.

Seal_of_Destroyer_Squadron_23_(1943).pngFoi sob sua liderança que tornou-se lendário o Esquadrão de Contratorpedeiros 23 (Little Beavers), o qual cobrou um preço alto aos japoneses: destruiu um cruzador, nove destróieres, um submarino, vários barcos menores e trinta aeronaves. O lema do CMG Burke era “Os contratorpedeiros que fizerem contato com o inimigo devem atacar o mesmo sem esperar ordem do Comandante de Força”. Por esta época ele já fazia jus ao apelido pelo qual era conhecido em toda a Marinha: “Burke 31 nós”, em alusão a velocidade (espantosa para os padrões da Segunda Guerra) que obrigava os navios sob seu comando a manter em combate. Amado pelos armamentistas, era o terror dos maquinistas!

Em março de 1944, Burke é nomeado Chefe de Estado Maior (CEM) da Força Tarefa 58 (5ª Frota de Porta-aviões Ligeiros), sob ordens do célebre Almirante (aviador naval) Marc Mitscher. Este arranjo atendia uma sábia diretiva do Comandante de Operações Navais (Chief of Naval Operations – CNO), Almirante Ernest J. King, segundo a qual Comandantes de Forças de Superfície como o Almirante Spruance deveriam ter como CEM um oficial aviador, e comandantes de Forças Aeronavais teriam um oficial de superfície como chefe de estado maior. No início, nem Burke nem Mitscher ficaram muito satisfeitos com este arranjo, mas com o tempo formaram uma dupla inseparável e de altíssima sinergia, arquitetando todos os sucessos da Task Force 58 e enfrentando até os ferozes ataques dos kamikazes japoneses. Ambos ainda trabalhariam juntos mais uma vez no pós guerra até o falecimento de Mitscher em 1947.

A Guerra da Coréia (1950-53) vai encontra-lo no posto de contra almirante, e ele desempenharia papel relevante (além de ganhar muita experiência em assuntos estratégicos) nas negociações de trégua entre as forças das Nações Unidas (ONU) e o exército da Coréia do Norte (KPA, Korean People’s Army).

Ele volta aos EUA em 1954 onde exerceu diversos cargos, inclusive o de Comandante da Força de Contratorpedeiros do Atlântico. Nesta altura de sua carreira acontece um fato que é considerado perfeitamente meritório para alguns mas redondamente injusto para outros: Burke foi promovido diretamente de duas para quatro estrelas – ou seja, ele nunca passou pelo posto de vice almirante. A verdade é que esta promoção relâmpago estava lhe abrindo as portas para o cargo de Comandante de Operações Navais (CNO), que assumiu efetivamente em 1955, praticamente no auge da Guerra Fria.

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Submarino de mísseis guiados Polaris (Imagem: Tattered and Lost Ephemera).

Se havia dúvidas de alguns almirantes a respeito da competência de Burke para o cargo, ela rapidamente desapareceria em virtude de suas realizações. Senão, vejamos:

  • Ele apoiou o brilhante almirante Hyman Rickover no desenvolvimento da primeira frota de submarinos nucleares do mundo;
  • Instituiu o programa de mísseis balísticos lançados de submarinos (uma aposta inovadora, mas de alto risco à época, porque poucas pessoas acreditavam ser possível miniaturizar eficientemente uma ogiva nuclear ao ponto da mesma caber num míssil lançado por submarino) – e veio o gigantesco Projeto Polaris;
  • Um ponto a favor de sua capacidade de descortino é o fato de que, embora Arleigh Burke tenha passado toda a sua carreira naval na Força de Superfície da US Navy, ele soube, como almirante, se apartar de qualquer preferência particular, compreendendo de maneira isenta que investir em submarinos era o melhor caminho para a Marinha e para os EUA naquele momento – e isto é pensar grande;
  • Como resultado destas decisões, os EUA passaram a contar com uma força nuclear submersa difícil de ser detectada e indestrutível sob o ponto de vista de sua totalidade.

A prova irrefutável da sabedoria e engenhosidade desta decisão é o fato de que nunca houve um conflito nuclear entre os EUA e a URSS de vez que, dentre outros fatores, os soviéticos tinham plena ciência que, mesmo que conseguissem destruir boa parte da força nuclear de seu oponente baseada em terra e nos céus num primeiro golpe, jamais poderiam garantir a destruição total das forças nucleares submersas da US Navy. Só lhes restou também investir em armas assim, ficando assegurado o equilíbrio. Menos mal.

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Burke passou a reserva da Marinha em 1961, depois de ter servido como CNO por três turnos nas administrações do presidentes Eisenhower e Kennedy.

O legado positivo de uma lenda da Marinha

Muito das tradições de aguerrimento e agressividade em combate da US Navy no pós guerra presumivelmente se devem ao espírito que o almirante Arleigh Burke lhe infundiu nos anos que foi CNO. É bem provável que ele tenha ajudado bastante a moldar o caráter ofensivo da mesma. A necessidade disto se explica porque eram os anos de disputa de espaço com o Bloco Comunista e a Marinha Americana era a linha de frente do Ocidente nesse confronto. Foi o homem certo para a missão.

Mas ele também tinha um lado profundamente humano. Dizem que certa vez num combate no Pacífico, o então comandante Burke – um perfeccionista incorrigível e extremamente exigente consigo mesmo – não teria ficado satisfeito com a própria conduta durante uma batalha que, apesar de indiscutivelmente vitoriosa para os EUA, no seu entender poderia ter resultado em perdas ainda maiores para o inimigo japonês não fora a demora dele próprio em dar a ordem para abrir fogo. Nesse momento, numa flagrante prova de humildade e capacidade de fazer autocrítica, ele diz a um jovem guarda marinha que se encontrava próximo:

A diferença entre um oficial brilhante e um medíocre é de apenas dez segundos”.

Este momento raro nos diz muito sobre a personalidade de Burke e o que se espera de um oficial da Marinha. Ao admitir seu erro para um oficial que iniciava a carreira naval, ele mostrou que um chefe militar precisa saber administrar suas fraquezas, que todos somos falíveis e temos que reconhecer e conviver com estas deficiências. E que devemos nos preparar durante toda a trajetória profissional para tomarmos decisões críticas da forma mais correta possível, porque a vida não nos avisa previamente a data e a hora em que elas se farão necessárias.

A existência de uma Marinha pode ser medida em séculos. Mas a sua essência, seus valores e, principalmente, seu compromisso para com o País ao qual serve, estes são decididos naqueles meros dez segundos em que sua liderança decide fazer o que é correto. Seja na paz ou na guerra porque, dificilmente, quem decide errado na calma da paz terá capacidade para fazê-lo na agitação da batalha.

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Selo em homenagem a Arleigh Burke.

Se fica algo de Arleigh Burke para nós, integrantes da Marinha do Brasil, é que devemos nos preparar o tempo todo para o exercício de nossas funções. Isto se aplica tanto a civis como a militares, a oficiais e a praças. A busca do aperfeiçoamento deve ser constante e infinita, diurna e noturna, e nenhuma oportunidade de aprendizado pode ser desperdiçada. Devemos fazer com que todos os nossos dias tenham valido a pena por nele termos nos tornado mais preparados do que a etapa anterior. Somos melhores quando reconhecemos que ainda falta muito para sermos apenas bons.

Mas há algo muito mais importante do que tudo na história de vida de Burke: conforme já foi dito acima, ele começou a vida como um filho de imigrantes suecos pobres do interior do estado do Colorado. Com esforço e trabalho duro, chegou ao posto mais importante da US Navy (nos EUA, o Comandante de Operações Navais é nomeado pelo Presidente da República). Uma sociedade que oferece estas oportunidades a imigrantes mostra ao mundo que, inobstante seus problemas intrínsecos, acredita no poder e na força da igualdade entre os homens, estando aberta a todas as línguas, credos e nacionalidades. Os EUA são uma nação onde um homem vale, acima de tudo, por sua capacidade de se dedicar ao bem comum de seus pares, independentemente de suas origens.

LIVRO RECOMENDADO:

Arleigh Burke Destroyers

  • Carlos Alvarez (Autor)
  • Em inglês
  • Encadernação clássica

O almirante Arleigh Burke faleceu em janeiro de 1996, aos 94 anos de idade, uma vida plena e longa dedicada totalmente a Marinha e ao País que ele amou e serviu tão bem. Ele teve a graça de ver, ainda em vida no ano de 1988, o batismo de uma das melhores classes de contratorpedeiros de todos os tempos da US Navy e que merecidamente leva seu nome: os DDG Arleigh Burke.


*Robinson Farinazzo é capitão de fragata (FN) da reserva da Marinha do Brasil, expert em tecnologia aeronáutica e consultor de Defesa. Com mais de trinta e cinco anos de carreira militar, extensa experiência de campo e formação superior em Administração de Empresas, é editor do Canal Arte da Guerra no YouTube e articulista do Blog Velho General. E-mail: robinsonfarinazzo@gmail.com.


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4 comentários

  1. Excelente matéria.
    Palavras novas são sempre bem vindas!

    tirocínio

    substantivo masculino
    1.
    primeiro ensino; aprendizado.
    “antes de chegar a pedreiro fez t. como ajudante”
    2.
    prática, exercício preliminar indispensável ao desempenho de determinada profissão; experiência.
    “há três anos faz t. para advogado”

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