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Por Renato Henrique Marçal de Oliveira* |

Conforme amplamente divulgado, na madrugada do último sábado, catorze de setembro, duas instalações petrolíferas da ARAMCO da Arábia Saudita foram atacadas, causando grandes estragos na capacidade produtiva do país. Ao que tudo indica, estas instalações foram atacadas por um grande número de drones e/ou mísseis de cruzeiro, e os estragos foram bastante intensos.
Não vamos aqui debater sobre autores dos ataques – mesmo porque até o momento ainda não há evidências conclusivas sobre a autoria –, mas vamos focar nos prováveis meios utilizados: drones e mísseis de cruzeiro.
Primeiramente, vamos destacar que conhecemos bem os termos VANT (Veículos Aéreos Não Tripulados) e RPA (Remotely Piloted Aircraft, Aeronaves Remotamente Pilotadas), utilizados, respectivamente, pela FAB (Força Aérea Brasileira) e USAF (US Air Force, Força Aérea dos EUA), mas vamos utilizar aqui o termo “drone” por ser o mais conhecido do público em geral.
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Em segundo lugar, pode-se classificar os mísseis de cruzeiro como uma categoria de “drones kamikaze” , ou seja, drones cuja função é “suicídio ao atacar o alvo”, e destacar que muitas das características de drones e mísseis de cruzeiro se confundem, portanto é possível tratar ambos na mesma discussão. Apenas a título de definição, ao falar de “mísseis de cruzeiro” aqui, estamos nos referindo a mísseis que voam, exclusivamente, dentro da atmosfera, e que seguem uma trajetória não-balística.
Por fim, e mais importante, este evento é apenas mais um lembrete de como o uso de drones e mísseis de cruzeiro, mesmo que por atores sem as capacidades de um Estado, tem o poder de complicar imensamente qualquer planejamento defensivo.
Origens dos drones e mísseis de cruzeiro
Pode não parecer, mas os drones e mísseis de cruzeiro não são invenções novas, e na verdade foram usados antes da invenção dos aviões mais pesados que o ar!
Em 1849, durante o cerco austríaco a Veneza, o “porta balões” SMS Vulcano, um dos precursores dos modernos porta-aviões, utilizou balões de papel (similares aos balões de São João) para lançar pequenas bombas incendiárias de 12-15 kg sobre a cidade, numa ação que, provavelmente, foi o primeiro uso ofensivo do poder aéreo embarcado na história.
Embora algumas bombas tenham de fato atingido a cidade, a imprevisibilidade dos ventos frustrou o ataque, sendo que alguns dos balões quase atingiram o próprio Vulcano! Claro que tais balões não eram pilotados, mas mostram claramente o potencial de pequenas aeronaves/mísseis na função de ataque.

Na Primeira e Segunda guerras mundiais foi tentado o uso de “drones suicidas”, inicialmente como alvos aéreos controlados por rádio, mas a tecnologia da época não era madura o suficiente. Os EUA trabalharam bastante no conceito, mas sem sucesso na época.


Nas Operações Afrodite (Força Aérea do Exército) e Bigorna (Marinha), os EUA utilizaram bombardeiros B-17 e B-24 convertidos para uso como “torpedos aéreos” gigantes, mas o sucesso foi praticamente nulo. Houve muitas mortes dos envolvidos nos testes, entre eles o Tenente Joseph P. Kennedy, Jr., irmão mais velho do futuro presidente John Kennedy.
Experimentos em outros países, como a Alemanha e a Inglaterra, também obtiveram resultado praticamente nulo.
O maior sucesso neste sentido, sem sombra de dúvida, o míssil de cruzeiro nazista Fieseler Fi-103, a famosa “bomba voadora” V-1, que é considerado por muitos como o primeiro míssil de cruzeiro realmente bem sucedido da história.

Apesar de relativamente primitivos, os V-1 foram extremamente eficientes em combate – veja na Tabela 1 a comparação entre dos estragos causados à Inglaterra durante os ataques da Blitz (12 meses) e dos V-1 (menos de 3 meses).

Depois da Segunda Guerra, outros países começaram a desenvolver drones tanto para uso em treinamento quanto para reconhecimento, e os resultados mais visíveis aparecem na Guerra do Vietnã. Os EUA usaram vários drones naquela guerra, principalmente para reconhecimento.

Já na Guerra do Yom Kippur, em 1973, Israel utilizou os Firebee para uma função mais ofensiva – servir de “isca” para as defesas árabes, ajudando no esforço global de SEAD/DEAD (Suppression/Destruction of Enemy Air Defenses, Supressão/Eliminação de Defesas Aéreas Inimigas), e a experiência adquirida foi essencial para que Israel se tornasse um dos maiores desenvolvedores e utilizadores de drones em missões de combate.
A vantagem dos drones “tipo DJI” é que são extremamente baratos e passíveis de uso em grandes quantidades, e a desvantagem é que são muito pouco resistentes a contra-ataques, tanto física quanto eletronicamente.

Mísseis de cruzeiro
Os mísseis de cruzeiro são, basicamente, drones suicidas mais sofisticados que geralmente seguem um voo pré-determinado, ao invés de serem pilotados remotamente (há exceções). Passaram a ser bastante utilizados a partir da Guerra do Vietnã (mísseis com curto alcance) e, desde a Guerra do Golfo, são utilizados mísseis com alcances de milhares de km.


De forma geral, qualquer país capaz de desenvolver aeronaves também terá a capacidade para desenvolver mísseis de cruzeiro. A recente disponibilidade de sensores como giroscópios, navegação inercial e GPS (Global Positioning System) para usos comerciais acabou por favorecer os países que querem fabricar tais armas, e países como o Irã, que há pouco mais de vinte anos seria considerado incapaz nesta área já são capazes de fabricar sistemas bastante modernos.
Ataques com dezenas, ou mesmo centenas de mísseis de cruzeiro, foram feitos por EUA e aliados em várias ocasiões, por exemplo contra a Síria em retaliação à suspeita de uso de armas químicas.
Como se defender de drones e mísseis de cruzeiro?
Como o uso dos V-1 na Segunda Guerra e de drones na Guerra ao Terror demonstram, e o ataque à ARAMCO relembra, não é nada fácil defender-se de ataques de drones e mísseis de cruzeiro bem coordenados e executados.
A curvatura da Terra limita bastante o alcance de detecção de tais engenhos. Como o sistema de guiagem das V-1 era bastante primitivo, os mísseis tinham que voar em linha reta e a altitudes entre 600 e 900 m, permitindo que radares baseados em terra os detectassem a mais de 100 km de distância, dando um tempo razoável para as defesas atuarem.
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Porém, com as tecnologias atuais de guiagem, mísseis de cruzeiro modernos podem voar a altitudes inferiores a 50 m, o que resulta em alcances de detecção inferiores a 50 km. Para complicar ainda mais o trabalho da defesa, em altitudes tão baixas os mísseis acabam por passar entre montanhas e prédios, o que os mascara ainda mais. Fora isso, como os mísseis podem voar através de pontos pré-programados, fazendo manobras e seguindo por rotas aparentemente ilógicas, é muito difícil prever seu alvo, o que dificulta muito não apenas o posicionamento das defesas, mas também sua coordenação.
No caso específico da ARAMCO (e de outras instalações petrolíferas), deve-se lembrar também que os próprios projéteis das defesas antiaéreas podem causar ou aumentar os incêndios, o que complica mais ainda a defesa.
Outro ponto a favor de drones e mísseis de cruzeiro é que, devido ao fato de voarem a velocidades relativamente reduzidas, eles podem ser feitos de materiais plásticos, que por sua natureza são maus refletores de ondas de rádio, reduzindo ainda mais o alcance de detecção.
Por fim, e provavelmente ainda mais importante, drones e mísseis de cruzeiro podem ser bastante baratos em comparação aos seus alvos. Voltando ao caso da ARAMCO, é provável que os alvos tenham sido atacados por dezenas ou mesmo centenas de armas, mas é quase certo que os estragos causados foram de centenas de milhões, ou mesmo de bilhões de dólares, o que significa que, em muitos casos, o custo-benefício favorece bastante o atacante.
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Conclusão
Esta análise, embora superficial, indica que drones e mísseis de cruzeiro já são uma grande dor de cabeça para qualquer comandante militar incumbido de proteger instalações sensíveis, e a tendência é que o problema se agrave cada vez mais.
A maior lição a ser tirada dos ataques contra a ARAMCO é que não se pode mais ignorar o uso de drones e mísseis de cruzeiro, nem mesmo por parte de players menores do que Estados, como os Houthis, o Hamas e o Hizballah.
Outra lição importante é que forças armadas modernas não precisam apenas de bons equipamentos, mas também de bom treinamento e planejamento. As forças armadas sauditas estão entre as mais bem equipadas do mundo, mas vem se tornando evidente que não estão conseguindo extrair o melhor do equipamento.
Fontes:
https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_unmanned_aerial_vehicles
https://en.wikipedia.org/wiki/Unmanned_combat_aerial_vehicle
https://www.popularmechanics.com/military/aviation/a28312/wwii-drone-strike-tdr-1/
https://paleofuture.gizmodo.com/the-tv-guided-drones-of-world-war-ii-1560130671
https://www.warhistoryonline.com/military-vehicle-news/short-history-drones-b.html
http://www.atinitonews.com/2019/09/drones-spark-fires-at-two-saudi-aramco-oil-facilities/
http://www.atinitonews.com/2019/09/drones-spark-fires-at-two-saudi-aramco-oil-facilities/
*Renato Henrique Marçal de Oliveira é químico e trabalha na Embrapa com pesquisas sobre gases de efeito estufa. Entusiasta e estudioso de assuntos militares desde os 10 anos de idade, escreve principalmente sobre armas leves, aviação militar e as IDF (Forças de Defesa de Israel).
Olá Renato, apenas para complementar teu artigo, é importante ressaltar que, apesar das possibilidades de manobra e de voo a baixa altura exibidas pelos mísseis de cruzeiro, eles voam, em geral, a velocidades subsônicas (justamente para poderem ter um raio de ação maior, o que permite seu lançamento fora da esfera de detecção do inimigo). O fato de voarem a velocidades subsônicas, no entanto, é seu calcanhar de Aquiles: defesas AAA de cano podem facilmente derrubá-los, desde que, evidentemente, estejam em alerta, à espera de um ataque. Por sua vez, um drone de vigilância pode também agir como importante peça na defesa aérea contra ataques por mísseis de cruzeiro, pois permite detectar veículos em voo “olhando para baixo”, minando, dessa forma, a capacidade de voo em manobra de um míssil de cruzeiro.
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Excelentes apontamentos.
O futuro realmente terá drones vs drones, mas no momento a principal vantagem dos drones / mísseis de cruzeiro é a dificuldade em detectá-los, e isso muitas vezes mais do que compensa a baixa altitude de voo – não muito diferente dos Exocet usados nas Falklands e no Golfo Pérsico.
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Muito bom Renato. Ótimo texto.
Comentando seu texto.
Mesmo com a dificuldade em detectar os mísseis e drones em questão. Pela quantidade e pela a qualidade da defesa anti aérea da Arábia Saudita me faz pensar como não foi possível ainda indentificar a direção ou a origem do ataque.
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Detectar a origem de lançamento de drones / mísseis de cruzeiro é complicado, ainda mais porque eles podem mudar de rota várias vezes ao longo do percurso.
A única solução é detectá-los do ar, mas se a Arábia Saudita estivesse com seus E-3 no ar fazendo isto eles provavelmente teriam conseguido frear o ataque.
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Boa analise seria bom uma analise mais profunda possivel sobre quem e como é o treinamento saudita!?
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Tema interessante, vou pensar no assunto!
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Será que as falhas estão no treinamento. Ou será pela obrigação do rei Agradar uns uns 10mil principes. E que muito deles vão parar mais forças armadas,. Muitas vezes tomando posições chave de controle comando no lugar de pessoas mais capazes?? Fico com esta impressão.
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Esse evento deve levantar algumas questões para os sauditas como por exemplo suas defesas foram subestimadas ou mal dimensionadas, o que fazer para se contrapor, por outro lado quem o fez enviou um recado uma vez feito pode ser feito novamente.
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Com certeza, inclusive os Houthis já ameaçaram novos ataques.
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Há uma foto de tanques de combustível atingidos nas instalações sauditas na mídia. Não sei se é verdadeira, mas mostra pontos de impacto muito precisos e unidirecionados.
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Vi essa foto, está circulando nas redes. Aparentemente é real.
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