Colar de Pérolas: a estratégia chinesa para dominar o Mar do Sul da China e a Região do Oceano Índico

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Por Reis Friede*


A Região do Oceano Índico (ROI) e o Mar do Sul da China (MSC)1 se constituem em porções geográficas extremamente importantes sob o prisma geopolítico, uma vez que estas são áreas que compreendem, com ênfase na primeira, a via principal de acesso aos países que, na atualidade, são os maiores produtores de petróleo e gás natural do mundo.

No século XXI já não se lutará só sobre o mar, mas também pelo mar. (HAROLD J. KEARSLEY; Maritime Power and the Twenty-First Century, Aldershot, Dartmouth Publishing Company, 1992)

Nesse contexto, tanto o Mar do Sul da China (local de passagem de 30% do tráfego marítimo internacional e onde se encontram grandes e potencialmente exploráveis reservas de petróleo e gás natural, comparáveis às da Venezuela) quanto a Região do Oceano Indico assumem uma condição estratégica, tanto sob o olhar econômico quanto político, pois agregam-se àqueles fatores também (e, em contraposição crítica) a importância do petróleo para o provimento energético, sobretudo para a atividade industrial chinesa; a necessidade dos Estados Unidos da América (EUA) (sob sua ótica) de continuar ostentando sua hegemonia mundial; e, por fim, a emergência de novas potências como a China, no contexto mundial, e a Índia, no espectro regional.

Ativos intrínsecos aos espaços marítimos podem polarizar perigosamente interesses de atores internacionais se não houver esforço dissuasório defensivo e trabalho adequado no âmbito da política externa. (LUCIANO PONCE CARVALHO JUDICE e CLEVELAND MAXIMINO JONES. “Clausewitz e a Polarização Marítima no século XXI”, Revista Marítima Brasileira, vol. 138, nº 04/06, abr./jun. 2018, p. 99)

Como é de amplo conhecimento, o acelerado crescimento econômico chinês vem consumindo imensas quantidades de petróleo oriundo, sobretudo, do Golfo Pérsico e da África, orientando aquela nação quanto à elevada necessidade de construir uma força militar, principalmente marítima, capaz de dominar tanto o MSC – com sua correspondente e futura possibilidade de exploração de petróleo em plataformas marítimas – como a ROI, garantindo, através de ambas, o tráfego de navios carregados de petróleo para abastecer as crescentes necessidades energéticas direcionadas para o contínuo desenvolvimento chinês.

O Colar de Pérolas (em inglês String of Pearls), desse modo, é a designação nominativa que o Ocidente outorgou à estratégia chinesa de cercar o MSC e a ROI, por meio da construção de diversas bases navais – inclusive em ilhas artificiais –, ampliando, desta forma, a presença da China nestas regiões, com o propósito de alcançar (em um futuro próximo) uma posição estratégica privilegiada em toda esta porção marítima e territorial do planeta.

A construção desse “Colar”, em muitos aspectos, redefine o jogo de poder na região, posto que o aumento da presença chinesa contrasta com a permanência (histórica) do poderio militar naval e aeroespacial norte-americano e com a ascensão militar da Índia – esta última aproximando-se diplomaticamente dos EUA, especificamente para contrabalancear a crescente militarização do Oceano Índico promovida pela China.

Segundo lições de Deepak Kumar (“A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico”. Revista da Escola de Guerra Naval, RJ; 2009, p. 127), “a Região do Oceano Índico tem sua importância estratégica baseada principalmente no seu posicionamento em relação às rotas comerciais”. Aproximadamente 3.500 navios carregando 80% do comércio do Oceano Índico transitam pelos estreitos de Malaca e Bab-el-Mandeb e pelo Cabo da Boa Esperança, principalmente para as potências extra regionais. Estas embarcações estão carregadas com suprimentos vitais de petróleo e materiais estratégicos e, assim, são objeto de sérias preocupações para as potências interessadas. Mesmo atualmente, 90% do comércio global e 65% de toda produção petrolífera são transportados pelo mar.

No mesmo sentido, e consoante ensinamento de ROBERT D. KAPLAN (Foreign Affairs; 2009, p. 16), “cerca de 70% do total de tráfego de derivados de petróleo passa pelo Oceano Índico, em seu percurso do Oriente Médio para o Oceano Pacífico. Enquanto tais produtos trafegam por esta rota, eles passam pelas principais linhas mundiais de transporte marítimo de óleo e alguns dos principais pontos focais do comércio mundial: Bab-el-Mandeb e os estreitos de Ormuz e Malaca. Aproximadamente 40% dos negócios mundiais passam pelo Estreito de Malaca; enquanto 40% de todo o petróleo bruto passam pelo Estreito de Ormuz”.

Vale registrar que esse processo – inicialmente silencioso – remonta ao início do século XXI, mas se tornou público particularmente após a chegada ao poder de Xi Jinping (2012), quando a China começou traçar (de forma efetiva e contundente) um audacioso plano estratégico que tem por propósito ampliar a sua influência mundial, utilizando para tanto uma gradual e ostensiva presença no Mar do Sul da China e também na Região do Oceano Índico.

Os crescentes interesse e influência chineses, desde o Mar da China Meridional até o Oceano Índico e o Golfo da Arábia, podem ser descritos como semelhantes a um Colar de Pérolas. Cada pérola, no seu respectivo cordão, é um nexo da influência geopolítica chinesa ou da sua presença militar. As pérolas importantes são: Ilhas Hainã, com instalações militares recentemente aprimoradas; Ilhas Woody, localizadas no Arquipélago Paracel, a cerca de 300 milhas náuticas a leste do Vietnã; porto de Chittagong, em Bangladesh; o porto de águas profundas em Sittwe, Mianmar; e o porto de Gwadar, no Paquistão, que é estrategicamente localizado nas proximidades do Golfo Pérsico. (CHRISTOPHER J. PEHRSON; String of Pearls: Meeting the Challenge of China’s Rising Power, 2006, p. 3)

Desta feita, em 2013, de forma discreta (e dissimulada), os chineses iniciaram a projeção global de seu poder nacional (militar, econômico, político e psicossocial/cultural) por meio, entre outras iniciativas, da militarização do Mar do Sul da China, particularmente pela inusitada estratégia de construir ilhas artificiais em uma região extremamente sensível, na qual circulam cerca de 30% de todo o comércio marítimo internacional e que encontra-se provida de grandes reservas de petróleo e gás natural.

Projetos de construção de portos e campos de pouso, relações diplomáticas sensíveis (e muitas vezes veladas) e a modernização da força naval formam a essência do Colar de Pérolas chinês. A segurança de matérias-primas e energia, de modo a dar suporte à política energética da China, é a principal motivação por trás do Colar de Pérolas. Então, percebe-se que essa política está relacionada com a principal Estratégia Nacional da China. A China também possui uma ambiciosa proposta, orçada em 20 bilhões de dólares, para a construção de um canal através do istmo tailandês de Kra, o que permitiria a seus navios um caminho alternativo ao Estreito de Malaca e ligaria o Oceano Índico à costa pacífica da China — um projeto no nível de importância do Canal do Panamá, e que futuramente pode fazer com que a balança de poder na Ásia penda a favor da China, dando à sua Marinha e à sua frota mercante um acesso fácil para um vasto e contínuo oceano, expandindo as   ligações marítimas do leste da África ao Japão e a península coreana. (ROBERT D. KAPLAN; Power Plays in the Indian Ocean, Foreign Affairs, Washington, 2009, p. 22)

Além disso, a forte presença da poderosa Marinha americana (USN – United States Navy) no Oceano Índico constitui, sob a ótica chinesa, uma constante ameaça, dado que eventuais bloqueios à frota de navios comerciais que transportam recursos naturais para a China poderiam acarretar grandes transtornos para a economia desse país. Assim, esta estratégia do Colar de Pérolas, para além do propósito de assegurar o transporte marítimo de insumos à economia chinesa, perpassa também pela ampliação do leque de opções ao translado, via oceano, com a construção de oleodutos e vias de acesso a portos de outros países.

Destarte, a China passou, mediante esse singular expediente, a reivindicar – sem qualquer fundamento legal e ignorando solenemente todas as críticas e mesmo condenações nos tribunais internacionais3 áreas a aproximadamente 2 mil quilômetros de distância de sua costa, mas, em contrapartida, a apenas poucos quilômetros dos territórios do Vietnã, das Filipinas e da Malásia, e, a partir do estabelecimento (efetivo) destas bases militares na região, a dar início a um processo de ostensiva conquista do Oceano Índico, atravessando o Estreito de Malaca e o Istmo de Kra, passando também, por meio de uma presença econômica massiva, com a construção de oleodutos, ferrovias e rodovias, pela Tailândia.

Uma vez estabelecida no Oceano Índico, a China iniciou e conduziu a construção de um porto marítimo de grande porte ao lado de um gigantesco terminal petrolífero em Mianmar e no vizinho deste, Bangladesh, ampliando, ainda, as instalações de um porto e de um aeroporto civil e militar, cercando geopoliticamente, por consequência, sua arquirrival, a Índia. Acabou também concebendo instalações no Sri Lanka, nas Maldivas e no Paquistão, onde os chineses estão construindo uma ligação por ferrovias e rodovias entre a sua fronteira e o porto de Gwadar. E, por fim, estendeu sua presença ao nordeste da África, no Djibuti, no qual implantou uma base militar, e no Sudão, no qual ampliou um porto (neste país) na fronteira com a Somália.

Essas são as chamadas “pérolas” que formam o “colar” chinês no Oceano Índico e por meio das quais a China ambiciona ter uma presença cada vez mais intensa, alcançando, então, posição de alto destaque no cenário político e militar mundial. Em natural reação, contudo, potências como a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul, a Índia (acuada pela presença chinesa em torno de toda sua costa) e Singapura e países com menor grau de desenvolvimento, como a Indonésia e o Vietnã, vêm formando uma aliança (ainda informal), em conjunto com os EUA, contra a presença chinesa no Oceano Índico –e também no Mar do Sul da China –, tornando estas regiões um novo ponto de tensão geopolítica e possível cenário para o início (ainda que embrionário) de uma segunda Guerra Fria.

Sob esse aspecto, é possível deduzir que a presente a ampliação da inferência chinesa replica, e grande medida, o expansionismo soviético dos tempos da Guerra Fria, o que, historicamente, somente foi contido, no contexto continental da Europa, com criação da Organização do Tratado. Atlântico Norte (OTAN), em 1949, e com a correspondente e forte determinação militar dos EUA, por meio do estabelecimento (e da manutenção) de tropas e equipamentos na região. Vale mencionar que a política chinesa de ascensão pacífica (de natureza passiva e não confrontativa), inaugurada por Deng Xiaoping no final dos anos 1970, foi substituída, em sua essência, pelo atual mandatário, que traçou uma nova estratégia de ascensão pacífica, porém com nítida (e diferenciada) feição ativa e confrontativa, retornando, em alguma medida, à concepção estratégica de Mao Tsé-Tung (1949-78), ainda que sem o viés bélico (ativo) que perdurou durante a maior parte de seu governo e que conduziu às guerras da Coreia (1950-53) e do Vietnã (1964-75) e aos diversos confrontos no Estreito de Taiwan.

Nesse contexto analítico, é cediço concluir que, assim como no passado, as novas ameaças, produzidas pelas aspirações globais chinesas, somente poderão ser efetivamente contidas, no contexto da denominada deterrência estratégica, por meio da criação de uma nova (e inédita) aliança formal de segurança e cooperação (por um modelo arquitetônico semelhante ao pacto da OTAN), liderada pelos EUA, com a necessária participação do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália, da Nova Zelândia, das Filipinas, de Singapura, da Tailândia e da Índia, incluindo, ainda, eventuais ex-adversários norte-americanos, como o Vietnã.

Replica-se, dessa feita, em certa medida, um cenário geopolítico semelhante ao que originou a Guerra Fria em 1947, com o expansionismo soviético, ainda que desprovido do nítido viés de confrontação ideológica que se constituiu na tônica do passado.

NOTAS COMPLEMENTARES:

1. Mar da China Meridional, Mar do Sul da China e Sul do Mar da China

O Estudo científico dos mares e oceanos consagrou nomenclaturas técnicas e específicas para cada porção marítima do planeta, estabelecendo a expressão “Mar da China Meridional” para o mar que banha o sul da China, assim como “Mar da China Oriental” para o mar que banha o leste da China.

Todavia, diversos autores – muitas vezes mais preocupados com as questões geopolíticas do que propriamente com a correta nomenclatura geográfico-oceânica – têm utilizado, substitutivamente, a expressão “Mar do Sul da China”, ou mesmo, excepcionalmente, “Sul do Mar da China” para traduzir a parcela oceânica descrita tradicionalmente nas cartas náuticas como “Mar da China Meridional”.

“Ao desenvolver o conceito de ‘Combate em Múltiplos Domínios’, o Exército dos EUA busca trilhar o caminho aberto pelos formuladores da Doutrina de Combate Ar-Terra. Deseja evitar passar por uma lição sangrenta e traumática como a vivida pelas AEF (American Expeditionary Force); em 1918. O Combate em Múltiplos Domínios é um conceito movido por uma escolha proativa, que leva em consideração a ameaça de insucesso. É uma evolução do conceito operativo do Exército dos EUA, detalhando uma resposta às observações estadunidenses sobre os acontecimentos no Mar do Sul da China, a Guerra de Nova Geração da Rússia e os desafios em curso no Oriente Médio.” (DAVID G. PERKINS. “Combate em Múltiplos Domínios”, Military Review, 1° trim./2018, p. 6-8)

“Um programa de modernização centrado em forças navais e mísseis mudou o equilíbrio de poder no Pacífico de um modo que os EUA e seus aliados estão apenas começando a digerir. Se por um lado a China se arrasta para projetar seu poder de fogo em uma escala global, por outro agora o país pode desafiar a supremacia americana nos lugares que mais lhe importa: as águas no entorno de Taiwan e no disputado Mar do Sul da China (…)” (STEVEN LEE MYERS. “Batalha Naval: China desafia poder dos EUA no Pacífico”, O Globo, 30/8/2018, p. 21)

Nesse sentido, vale registrar as considerações do analista em geopolítica Konstantin Sokolov, que, comentando as palavras do Presidente Xi Jinping, em entrevista à Sputnik China, afirmou que “(…) os EUA conduzem uma política abertamente provocadora nesta região (Mar da China Meridional) (…) Xi Jinping deixou claro que nenhuma provocação dos Estados Unidos terá efeito sobre a China; em particular, os patrulhamentos marítimos e aéreos norte-americanos nas águas próximas da China, especificamente no Mar do Sul da China.” (“China encerra questão do Mar do Sul da China com os EUA”, Sputnik China, 28/6/2018).

A última expressão (Sul do Mar da China), considerada pouco técnica, na medida em que inexiste propriamente um mar territorial chinês transcendente às 12 milhas náuticas de sua costa litorânea, vem sendo, todavia, cada vez mais utilizada, especificamente por alguns analistas, com fundamento em pronunciamentos de autoridades chinesas que contrariando os tratados internacionais, insistem em afirmar pela efetiva existência um Mar da China, consagrando, por conseguinte, a expressão “Sul do Mar da China” para designar a área marítima historicamente denominada de “Mar da China Meridional”.

Oportuno registrar, em necessária adição, que a expressão “Sul do Mar da China” também tem sido empregada para designar a parte sul do Mar da China Meridional, onde, por exemplo, Brunei reclama, especificamente, quanto à existência de uma zona (própria) de exploração econômica exclusiva.

Vale por fim esclarecer que a própria expressão “Mar da China Meridional” é contestada por diversos países, especialmente as Filipinas, que levantam objeções a esta nomenclatura com o argumento que ela implica, indiretamente, o reconhecimento de uma suposta soberania chinesa sobre esta porção marítima que é compartilhada por diversas nações.

2. A Metamorfose da China em Potência Global

Segundo lições de Philip P. Pan (“A Metamorfose da China em Potência Global”, O Globo, 20/11/2018, p. 20), “em 1984, logo após a morte de Mao Tsé-Tung, um grupo de estudantes de economia se reuniu num refúgio nas montanhas nos arredores de Xangai para debater uma questão premente: como a China poderia alcançar o Ocidente? O país se recuperava de décadas de turbulência. Progressos no campo já tinham acontecido, porém mais de 75% da população vivia em extrema pobreza. O Estado decidia onde cada pessoa trabalhava, o que cada fábrica produzia e quanto custava cada item.

Os estudantes queriam liberar o mercado, mas temiam que isso fosse derrubar a economia e inquietar os burocratas do partido. Por fim, chegaram a um consenso: as fábricas deveriam cumprir as cotas estatais, mas poderiam vender qualquer artigo adicional que produzissem, ao preço que escolhessem. Foi uma proposta inteligente, discreta e radical para atenuar a planificação.

A economia chinesa cresceu tanto que é fácil esquecer como a metamorfose do país em uma potência era improvável e o quanto sua ascensão foi improvisada e veio do desespero. A proposta que saiu das montanhas, logo adotada como política de governo, foi um primeiro passo crucial.

A China agora lidera o mundo em índices como número de proprietários de casas, usuários de internet e universitários, entre outros indicadores. A pobreza extrema caiu para menos de 1% da população. Um lugar estagnado e empobrecido tornou-se o maior rival dos Estados Unidos desde o fim da União Soviética. Agora, um desafio histórico tem lugar. O Presidente Xi Jinping promove uma agenda externa mais assertiva, enquanto endurece em casa. Com o Governo Donald Trump tendo lançado uma guerra comercial contra a China, em Pequim, a questão não é mais como alcançar o Ocidente, mas como avançar, em uma era de hostilidade com os EUA.

O padrão é recorrente: um poder em ascensão desafia o estabelecido. Uma complicação também é familiar: por décadas, os EUA encorajaram a ascensão da China, construindo a parceria econômica mais importante do mundo. No período, os EUA presumiram que a China um dia cederia às supostas regras de modernização e que a prosperidade alimentaria pedidos por liberdade e democratizaria o país. Ou então que a economia naufragaria, sob o peso da burocracia. Mas nada disso aconteceu.

Os líderes chineses abraçaram o capitalismo, mas continuam a se chamar de marxistas. Recorreram à repressão para manter o poder, mas sem sufocar o empreendedorismo. E tiveram mais de 40 anos de crescimento contínuo, com políticas pouco ortodoxas.

Em setembro de 2018, a China celebrou 69 anos de governo comunista, superando a União Soviética. A economia do país caminha para, cada vez mais, rivalizar com a estadunidense. Os comunistas chineses estudaram com afinco os erros soviéticos. Concluíram que abraçariam ‘reformas’ para sobreviver, mas que isso não incluiria a democratização.

A China oscilou desde então entre a abertura e a contenção, entre experimentar a mudança e resistir a ela. Muitos disseram que o partido fracassaria. Mas pode ser por isso mesmo que o país decolou. Os burocratas que eram obstáculos ao crescimento tornaram-se motores dele. Funcionários dedicados ao comunismo começaram a buscar investimentos.

Foi uma notável reinvenção. O partido deixou a economia planificada intacta, mas também viabilizou, em paralelo, uma economia de mercado. Permitiu, por exemplo, que os agricultores vendessem as próprias colheitas, mas manteve a propriedade estatal da terra. Suspendeu restrições a investimentos em ‘zonas econômicas especiais’, mas as preservou no resto do país. Introduziu a privatização, vendendo no começo apenas participações minoritárias em empresas estatais.

O longo boom econômico do país seguiu o excesso autocrático da Revolução Cultural, que dizimou o aparato do partido. O sucessor de Mao, Deng Xiaoping, guiou o país em uma direção radicalmente mais aberta. Mandou jovens autoridades chinesas para o Ocidente para estudar como as economias modernas funcionavam. Investiu em educação, expandiu o acesso a escolas e universidades e quase eliminou o analfabetismo. A China agora produz mais graduados em ciência e engenharia por ano do que os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul e Taiwan juntos.

Outra explicação para as transformações está em mudanças burocráticas. Analistas às vezes dizem que a China abraçou a reforma econômica e resistiu à política, mas o partido fez mudanças após a morte de Mao, que não foram profundas a ponto de gerarem eleições livres, mas ainda assim significativas. Introduziu limites de mandato e idades de aposentadoria compulsória, o que facilitou a expulsão de funcionários incompetentes. E reformulou os boletins usados para avaliar os líderes locais, concentrando-se quase exclusivamente em metas econômicas concretas. Os ajustes tiveram impacto tremendo, injetando uma dose de prestação de contas e de competição no sistema político. A China criou um híbrido único, uma autocracia com características democráticas; disse Yuen Yuen Ang, cientista política da Universidade de Michigan.

Em dezembro de 2018, o Partido Comunista celebrou o 40º aniversário das políticas de ‘reforma e abertura’ que transformaram a China. A propaganda triunfal começou, com Xi Jinping à frente. Ele é o líder mais poderoso do partido desde Deng Xiaoping. Eles se diferenciam de uma maneira importante: Deng encorajou o partido a buscar ajuda e experiência no exterior, mas Xi prega a autossuficiência e alerta para as ‘forças estrangeiras hostis’. Importa-se menos com a ‘abertura’.

Dos muitos riscos que o partido assumiu na busca pelo crescimento, talvez o maior tenha sido permitir investimentos, comércio e ideias estrangeiros. Foi uma aposta excepcional, de um país antes tão isolado quanto a Coreia do Norte, Recompensou: a China aproveitou a onda da globalização e emergiu na fábrica global. A adoção da internet ajudou o país a se tornar líder em tecnologia. E a ajuda externa ajudou a China a reformar seus bancos, a construir um sistema jurídico e a criar corporações modernas.

O partido prefere hoje uma narrativa diferente, apresentando o boom como ‘algo que cresceu a partir do solo chinês’. Mas isso obscurece uma grande ironia, qual seja a de que os inimigos de Pequim ajudaram o país a ser o que é hoje. Os Estados Unidos e o Japão, ambos rotineiramente difamados por dirigentes do partido, tomaram-se importantes parceiros comerciais e foram importantes fontes de ajuda, de investimento e de expertise.” (PHILIP P. PAN; “A Metamorfose da China em Potência Global”, O Globo, 20/11/2018, p. 20)

3. As contradições da política norte-americana em relação aos desafios geopolíticos chineses e russos

A reanexação do território da Crimeia, outrora pertencente à Rússia e “doado” à Ucrânia pelo líder soviético Nikita Kruschev em 1954, e o desafio chinês concernente à construção de ilhas artificiais, anexando (direta e ostensivamente) faixas territoriais em plenas águas internacionais1, continuam sem qualquer resposta efetiva por parte do Ocidente, não obstante as duras sanções econômicas implementadas contra a Rússia em 2014. O Ocidente, a exemplo de episódios semelhantes durante a Guerra Fria, aparentemente receia uma confrontação direta com Pequim, ainda que não com Moscou.

A política externa norte-americana parece ainda não ter compreendido que o verdadeiro adversário dos sistemas democráticos ocidentais deixou há muito de ser representado pelo decadente Império Russo, passando a ser a ascendente candidata a superpotência (China), com sua política (pública) de obter a hegemonia global até 2050.

Nesse sentido, os EUA não estão monitorando adequadamente o extraordinário crescimento militar chinês, inclusive com o desdobramento de mísseis intercontinentais com base em terra (ICBM) e em submarinos (SLBM), limitando suas atenções para a eventual prorrogação do “novo” Start (Strategic Arms Reduction Talks), assinado, em 2010, entre a Rússia e os EUA e que prevê a limitação do arsenal nuclear operacional dos dois países para o menor nível em décadas, desconsiderando, negligentemente, o crescente arsenal chinês e, em parte, os de outras nações como a Índia, que também passou a integrar o seleto clube das quatro únicas nações que têm ICBM – a Coreia do Norte ainda não possui um dispositivo verdadeiramente funcional desta magnitude, e o Reino Unido, a França, Israel e o Paquistão não contam, em seus arsenais, com este tipo de arma de longo alcance.

1 Incluindo zonas de exploração econômica exclusiva de outras nações, em afrontoso repto à soberania nacional destes países de forma muito mais gravosa (posto que sem qualquer respaldo legal, histórico ou de qualquer outra natureza).


*O Desembargador Reis Friede é Presidente do Tribunal Regional Federal da Região (biênio 2019/21), professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. É autor do livro Ciência Política e Teoria Geral do Estado e colaborador frequente da RMB – Revista Marítima Brasileira.


*Imagem de capa: ilustração, produção própria.


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2 comentários

  1. Quando passamos a ter acesso à estes estudos e dissertação das estratégias dos países e governos….passamos a compreender melhor as pequenas investidas comerciais e diplomáticas que estão em curso em nosso tempo.
    Parabéns

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