Duas palavras, muitas vidas

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PACIFIC OCEAN (Aug. 2, 2018) Two U.S. Air Force B-52H Stratofortress bombers fly over the Pacific. Two U.S. Navy P-8A Poseidon aircraft assigned to Patrol Squadrons (VP) 45 and VP-4 joined the B-52s in a joint training mission in the vicinity of Japan over the East China Sea in support of U.S. Indo-Pacific Command’s Continuous Bomber Presence operations, which are a key component to improving combined and joint service interoperability. (U.S. Air Force photo by Airman 1st Class Gerald R. Willis)
Farinazzo-04 Por Cap. Fr. (FN) RM1 Robinson Farinazzo

É comum, no cotidiano das atividades aéreas, a menção de uma série de conceitos por demais importantes como CRM, GRO, LOFT etc. Todos eles são indiscutivelmente muito úteis, mas serão suficientes? Até que ponto a simples adoção destas siglas no seu vocabulário usual torna um aeronavegante menos propenso a riscos ou apenas mais apegado a formalidades? Não estou aqui para desmerecer estes conceitos, e sim para vender meu peixe que é profissionalismo e operacionalidade, pilares de qualquer aviação militar que se preze.

Estas duas palavras, quando combinadas de maneira imprópria, tem efeito devastador parta a segurança de vôo. Operacionalidade com pouco profissionalismo leva a imprudência. Profissionalismo com baixa operacionalidade redunda em frustração, que descamba para desleixo e acaba em acidente.

A palavra profissionalismo vem de profissional, qual seja, aquele que exerce uma atividade por profissão ou ofício. Por uma questão de formação, sempre vi com reservas qualquer forma de diletância ou amadorismo. Todas as vezes que converso com alguém sobre trabalho sempre presto muita atenção se o interlocutor domina os processos, consulta manuais e publicações técnicas, tem as ferramentas necessárias ao alcance e, principalmente, se ele tem dúvidas e as expressa de maneira honesta.

A experiência mostra que quase todas as pessoas que possuem certeza demasiada sobre variados assuntos invariavelmente estão desatualizadas. O profissional de aviação deve ter a dúvida por base, ser inquiridor, investigativo e contestar sempre, visando buscar uma perfeição que nunca será atingida – pois no sacerdócio da aviação, todos os pecados são mortais.

Vamos abordar a questão por uma visão oriental do problema. A tradução da palavra “Judô” do idioma japonês para a língua portuguesa resulta numa expressão mais ou menos parecida com “o caminho da suavidade”. Neste esporte, apesar da diversidade de cores para faixas simbolizando diferentes graus de aprendizado, há dois significados importantes: se a faixa branca, inicial, simboliza o aluno que não sabe nada, a faixa preta simboliza que o praticante, finalmente, está no início de uma jornada sem fim em busca de disciplina, trabalho e de um padrão cada vez mais alto. Simples assim – a jornada de aprendizado e busca por excelência nunca termina.

Um bom profissional reconhece o quanto não sabe, mas procura sempre preencher esta lacuna, valendo-se de todos os meios a seu alcance, como palestras, simpósios, cursos, pesquisas de campo, consulta a fabricantes – vale tudo.

Agora vamos ao segundo ponto do dia, o lado operacional. Ouço muito as pessoas dizerem “sou operativo”, referindo-se ao fato de que gosta de voar, operar, etc. A verdade é que a definição de operacional, no dicionário, é “o que está pronto para funcionar”. Então eu faço uma pergunta: Você que se diz “fully operational” está pronto para a atividade aérea ? Conhece os limites da máquina , as peculiaridades do meio ambiente em que opera? Está preparado para uma degradação não prevista destas condições? Mais importante de tudo, Você conhece seus limites, suas fraquezas e tem uma percepção honesta de si mesmo quando levado ao limite?

Vou ilustrar o quanto operacionalidade pode ser perigosa quando dissociada de profissionalismo, fazendo alusão a um acidente fatal ocorrido na U.S. Air Force anos atrás, mas que poderia acontecer em qualquer força aérea a qualquer tempo:

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Boeing B-52H-175-BW Stratofortress 61-0036 do 96º Esquadrão de Bombardeio em Barksdale, Louisiana, em fev. de 2012 no Exercício Red Flag na Nellis AFB, Nevada (Foto: Kevin Cox/USAF)

“Ele era o exemplo típico de o melhor piloto da unidade’ (isto é, para aqueles que ainda acreditam que se pode aferir o quanto um piloto é melhor do que outro) – e que unidade: um esquadrão norte-americano de bombardeiros B-52 (para quem não sabe, octoreatores subsônicos com capacidade de lançar até 30 toneladas de armamento).

Os bombardeiros e seus tripulantes tem tradição de mais de 50 anos intervindo em conflitos armados, do Vietnã ao Afeganistão, passando pelo Golfo e etc.

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Cockpit de um B-52 Stratofortress (Foto: SSGT Scott Stewart)

Estes esquadrões eram doutrinados, desde os tempos da guerra fria, a voar a baixíssima altitude em profundas penetrações no território inimigo e assim driblar a vigilância dos radares do Pacto de Varsóvia. E quando eu menciono baixa altitude, quero dizer copa das árvores. Vamos lembrar que se trata de uma aeronave com o MGTOW em torno de 219 toneladas, voando a MACH 0.65, mas que também voa no limite da estratosfera sobre os pólos, em vôos transcontinentais, os quais eram permitidos por sua enorme autonomia (cerca de 14.000km sem contar REVO). Ou seja, havia toda uma cultura de operar muito na unidade.

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Acidente na base aérea de Fairchild. Junto ao estabilizador vertical do B-52 é possível ver a escotilha ejetada pelo co-piloto, que não conseguiu completar a sequência de ejeção (Foto: USAF)

Acrescente uma certa condescendência quanto a indisciplina em vôo por parte de seus comandantes de unidade anteriores e está montado o cenário da tragédia, a qual se deu num lindo dia de sol e portões abertos ao público na base aérea onde o esquadrão estava baseado. A cinemática prevista para as atividades do dia era um vôo a baixa altura sobre a pista, nada mais, nada menos, mas nosso amigo decidiu inovar com algumas curvas de grande inclinação voando na faca: a aeronave estolou e virou uma bola de fogo na presença das famílias de todos os outros tripulantes que pereceram junto com ele”.

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B-52 atinge o solo e explode (Foto: USAF)

A imolação pública desta valiosa tripulação poderia ter sido evitada se fosse exigido um pouco mais de profissionalismo do piloto em comando daquela aeronave.

Nunca lhe impuseram limites, e jamais foi cobrada nem exigida uma atitude mais profissional e menos exibicionista de sua parte. Num caso flagrantemente rico em exemplos do que desejo mostrar neste artigo, sobrou operacionalidade onde faltou profissionalismo. Para os que idolatram tabelas e gráficos:

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Combinações e resultados de duas simples palavras.

É saudável operar. Mesmo operar no limite faz parte do jogo da aviação militar, e talvez nunca chegue o dia em que este componente (risco aceitável) saia de nossa equação, porém é injustificável, sob qualquer ponto de vista, o sacrifício de tripulantes altamente treinados e aeronaves caríssimas em tempos de paz praticando atividades aéreas rotineiras de maneira negligente, sacrifício este que poderia ter sido evitado se houvesse equilíbrio na dosagem de operacionalidade com profissionalismo.

Duas palavras que, mal ajustadas, podem destruir muitas vidas.


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VÍDEO DO ACIDENTE

Veja o vídeo do acidente abordado no texto (atenção: este vídeo contém cenas do impacto real da aeronave).


CANAL ARTE DA GUERRA

Assista ao vídeo sobre o B-52 pelo Canal Arte da Guerra, do Comandante Robinson Farinazzo.


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